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Escrever de pé

Numa lista breve, encontro pelo menos dez escritores que trabalhavam de pé. Hemingway e Roth entre eles. Woolf também. Além de Nabokov e Pessoa. A lista segue em frente. Não vejo pontos de relação entre as obras desses autores, e o fato de que trabalhassem de pé tampouco me parece uma condição determinante sobre o tipo de literatura que acabaram produzindo. Mas observo que, em pé, há um fator que difere de todos os outros quando se escreve sentado: a pressa. Há muita urgência pra terminar. Pra ser claro. Pra dizer sem volteios. Pra que o leitor entenda que, do lado de cá, tem alguém em posição desconfortável operando com o máximo de objetividade a fim de chegar ao final. Como se esperasse no ponto de ônibus. Porque as pernas cansam, os ombros pesam mais e a cabeça se inclina pra baixo num ângulo que a faz parecer um ponto de interrogação entristecido com a eterna falta de resposta para as grandes questões da vida. E nisso pensamos bem pouco quando imaginamos a ativid...

Precisamos falar sobre a Tupperware

E, pra completar a tríade doméstica, outro dia escrevo sobre as Tupperware, que estão para a louça suja como o banheiro está para a casa. Sou bom com louças e talheres. Gosto de lavar. Faço tudo devagar, dedicando a cada faca e garfo uma paciência infinita. Ensaboo com cuidado, enxáguo e depois coloco no escorredor. Mas nada me tira mais a paciência que uma Tupperware e sua dupla flexibilidade. Primeiro, de material. O plástico, sempre mole, dobra à força da mão, o que me obriga a usar mais energia pra deixar limpo algo tão insignificante, suficiente apenas pra uma porção de purê de batata ou feijão. Segundo, a natureza do plástico, que é refratária ao detergente.  Dos compostos de que são feitos os utensílios domésticos, o plástico é certamente um mau-caráter. Não porque polui o ambiente, mas porque, mesmo depois de três ou quatro lavagens, continua oleoso, suas beiradas ou tampas sempre escondendo algum resto de comida.  Sua sujeira não sai tão fácil. As má...

O caso do banheiro

Tenho um amigo que acaba de se casar e mudar. Uma dupla revolução: primeiro, saiu da casa da mãe depois de 35 anos sob as asas da matriarca.  Depois, casou. Duas coisas muito grandes na vida de qualquer pessoa. Então, há pelo menos três semanas que temos conversas frequentes sobre condutas domésticas. Falamos basicamente sobre itens de limpeza,  banheiro, cozinha, o melhor lugar pra mandar instalar um ar-condicionado, as dificuldades embutidas na aplicação de um papel de parede, a guerra fria por trás da roupa suja e por aí vai. Pequenas querelas que temperam a vida a dois. Vejam o caso do banheiro, por exemplo. Sempre evitei esse lugar da casa quando se trata de faxina. Se posso escolher, fico com quartos e corredores, além da varanda. Mas não o banheiro. Nunca o banheiro. Jamais o banheiro. Por quê? Muita gente fala que o sorriso é o espelho da alma. Mentira. É o banheiro. É lá onde se concentram nossas virtudes e impurezas, nossas fragilidades e fortalezas....

A parte que falta

Agora que deixei de lado o Facebook, tentei usar o tempo que sobra pra fazer coisas boas, tipo ler mais ou ver mais filmes. Dois dias depois, só tinha conseguido rir desse vídeo da Jout Jout e começar uma nova série que me deixa triste pra caralho porque o protagonista está tão na merda quanto eu. A mudança de algoritmo do FB foi determinante pra tudo isso. Menos Síria e notícias sobre Trump, mais amigos em aniversários ou bolando com seus filhos e PETs na sala de estar. Sobre isso, um parêntese: não sei se é impressão minha, mas filhos e PETs são cada vez menos diferentes. Uma petização da criançada e sua contraparte, a infantilização dos bichos. Meninos criados como gatos de estimação, cachorros como crianças mimadas. Resolvo sair do FB pra dar uma volta, mas olho em volta e não acho nada.   Caio no vídeo da Jout Jout. É como tropeçar na rua e entrar de cabeça num bueiro de algodão doce. Sério nos primeiros segundos. Simpatizo com a fatia de pizza rolando. Depois...

A história das goteiras

Não sei se já observaram uma goteira. Como se forma, os desenhos que restam quando o sol desponta e ela vai embora, a pressa das pessoas em aparar a água tão logo percebem que na casa há um vazamento. Na rua tomam banhos e até se divertem nas biqueiras, mas o ambiente doméstico é sagrado. Nele não se permitem goteiras, que têm qualquer coisa de agourentas. Ou de desleixadas.  Primeiro a telha que se afasta. Um gato à procura do cio, um vento mais forte, um soluço da própria casa. Conjunto de fatores casuais que resultam nessa abertura. Depois a chuva, que precisa vir inclinada, como a pedir licença para entrar. Permitida, vem a goteira.  Mas antes é preciso que chova intensamente por curto período ou muitas horas. Num caso como no outro, produz-se a fenda através da qual a água se verte, como sangue quando nos cortamos em regiões pouco irrigadas. Vovó dizia: está minando sangue. E no corpo a parte ferida começava porejar aos bocados.  A goteira é a falha da ...

Pedra

É como se desaprendesse. Primeiro tomar a caneta, depois o papel, recitar brevemente a lista de tarefas. Apenas para esquecê-las no primeiro instante. Uma litania da solidão. Então lembrar novamente, agora passando a culpar-se. Afinal, está tudo atrasado, tudo em compasso acelerado, tudo que corre e volta e torna a correr.   Tento. Como se friccionasse duas pedras molhadas na tentativa de produzir fogo. Nada de fagulha, nada de chama. Apenas o som da pedra lascando-se contra a outra, o choque de uma superfície cuja solidez ninguém coloca em dúvida. Tenho inveja da pedra que não se move. 

O apartamento

O apartamento está pintado, as paredes sem marcas. Cruzo a entrada de pedras. Se alguém viveu por ali nos últimos 12 meses ou 12 anos, não se sabe. Os quartos, os móveis, nada retém memória. Fico pensando nisso ainda por uns segundos.   Damião é moreno, baixo. Veste calção e bermuda. Tem cheiro forte de desodorante. Tipo desconfiado. Atravessa a sala e aponta o guarda-roupa embutido. Depois dá três tapinhas na pia do banheiro, que balança. É nova, ele diz. São todos iguais, mas os detalhes fazem a diferença. Pouca gente repara. Simpatizo imediatamente com Damião. Tipo que gosta de detalhes, e detalhe hoje não tem tanta importância. Talvez até se queixe quando os pretendentes a inquilinos ignoram uma demão de tinta mais caprichada, uma porta bem assentada, uma janela que abre sem rangido. É o seu trabalho naquele momento. Ele tem orgulho, dá pra notar. É o que chama de detalhe. Imagino uma rotina como a sua: limpar, varrer, regar, rebocar quando necessário, colocar o l...