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O caso do banheiro

Tenho um amigo que acaba de se casar e mudar. Uma dupla revolução: primeiro, saiu da casa da mãe depois de 35 anos sob as asas da matriarca. Depois, casou. Duas coisas muito grandes na vida de qualquer pessoa.

Então, há pelo menos três semanas que temos conversas frequentes sobre condutas domésticas. Falamos basicamente sobre itens de limpeza, banheiro, cozinha, o melhor lugar pra mandar instalar um ar-condicionado, as dificuldades embutidas na aplicação de um papel de parede, a guerra fria por trás da roupa suja e por aí vai. Pequenas querelas que temperam a vida a dois.

Vejam o caso do banheiro, por exemplo. Sempre evitei esse lugar da casa quando se trata de faxina. Se posso escolher, fico com quartos e corredores, além da varanda. Mas não o banheiro. Nunca o banheiro. Jamais o banheiro.

Por quê?

Muita gente fala que o sorriso é o espelho da alma. Mentira. É o banheiro. É lá onde se concentram nossas virtudes e impurezas, nossas fragilidades e fortalezas. No banheiro nada se esconde – tudo que não presta no corpo fica à mercê do escrutínio de quem entre e acenda a luz.  Podemos disfarçar a sujeira que vamos fingindo não ver durante semanas de negligência com a faxina. Mas não no banheiro.

Por ser o único lugar realmente transparente de qualquer casa, tendo a fugir dele. As paredes e azulejos de um banheiro refletem mais nossas qualidades do que um currículo ou um perfil nas redes sociais. Apenas ali somos nós mesmos. Apenas no banheiro estamos de fato sozinhos.

Por isso evito esse lugar. Prefiro os quartos ou a sala, simples na sua dinâmica de varrição e pano molhado, dois expedientes que se mostram insuficientes quando se trata de deixar um banheiro reluzindo.

Disse tudo isso a esse amigo. Se há algo que devemos valorizar na vida, é a limpeza do banheiro. E se existe uma tarefa da qual nunca é tão vergonhoso tentar escapar, é a limpeza do banheiro.

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