Pular para o conteúdo principal

A história das goteiras

Não sei se já observaram uma goteira. Como se forma, os desenhos que restam quando o sol desponta e ela vai embora, a pressa das pessoas em aparar a água tão logo percebem que na casa há um vazamento. Na rua tomam banhos e até se divertem nas biqueiras, mas o ambiente doméstico é sagrado. Nele não se permitem goteiras, que têm qualquer coisa de agourentas. Ou de desleixadas. 

Primeiro a telha que se afasta. Um gato à procura do cio, um vento mais forte, um soluço da própria casa. Conjunto de fatores casuais que resultam nessa abertura. Depois a chuva, que precisa vir inclinada, como a pedir licença para entrar. Permitida, vem a goteira. 

Mas antes é preciso que chova intensamente por curto período ou muitas horas. Num caso como no outro, produz-se a fenda através da qual a água se verte, como sangue quando nos cortamos em regiões pouco irrigadas. Vovó dizia: está minando sangue. E no corpo a parte ferida começava porejar aos bocados. 

A goteira é a falha da casa, disso todos sabemos. Mas terá um culpado? Quando menino, as culpas se distribuíam entre as crianças, que cedo aprendiam a trepar-se no telhado. Hoje não é mais assim, e todos concordamos em que as goteiras dos apartamentos têm origens desconhecidas, quase místicas.  

Falha, sim, mas uma falha perdoável. Passamos o ano certos de que o telhado se sustenta por si. Quando chove, então, notamos a brecha. A fresta. É possível ver do outro lado do mundo. O que haverá ao final?

Então pensamos que a goteira é um telefone sem fio em cujas pontas estão o dentro e o fora. Não sabemos sobre o que conversam, é verdade, apenas que passam bastante tempo em troca de mensagens. Como se segredassem coisas muito importantes. A vida alheia. Uma morte. A mulher que deixa a casa em alta madrugada. 

Acontece, porém, de as goteiras nascerem apenas desse movimento brusco da própria edificação, que se ergue como se precisasse abandonar uma posição que lhe deixou as pernas dormentes. Num dia, a casa solta um rumorejo, como a lamentar uma dor nos quadris. E depois se aquieta. 

Casas são bichos vivos. É comum que, entre meia-noite e cinco horas da manhã, estalem e riam.  Piso e parede são falantes. Portas são mais caladas. Janelas gostam de assustar. Guarda-roupas embutidos preferem manter pra si todo o pequeno mundo de vilezas inconfessáveis. 

Apenas as goteiras são mais abertas. Chegam e vão, nunca parmanecem no mesmo lugar. Quando damos fé, estão de partida. E voltam no ano seguinte com roupas novas. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...