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Rasurar, reescrever

Resolveu anotar tudo, cada atividade. Amanhã começaria algo novo, por exemplo. Depois sairia. Depois leitura e café. Depois um espaço aberto a ser preenchido por qualquer coisa. Nunca a fixação de escrever, registrar cada pormenor e deixar tudo grafado. Como se memorizar o futuro antes de acontecer. Como se controlar o tempo e nisso não estar à mercê do descaminho. Mas tudo também tão volátil, palavras em um caderno, coisas ditas e desditas. Coisas que iam e voltavam. Contra tudo que passa decidiu escrever ainda mais firme, letra em pé, tinta preta. Irrevogável. Escreveu que almoçaria e de fato almoçou, em seguida foi ao mercado e trocou a lata de leite vencida por outra no prazo, tudo antes previsto no próprio caderno de anotações. Ainda a mania de não verificar os dados de validade.  Passava por idiota, mas era apenas desatento. Pediu que trocassem. Voltou com outra sacola cheia de maracujás. Era o melhor suco. O travo na bochecha, a acidez bem dosada com ce...

Fotografia

Fotografa o interior de apartamentos. Aquele, por exemplo. Um gato, sofá, discos, cinzeiro e uns poucos livros na sala. Cadeira e mesa. Abajur, jogos de montar e cartas. Objetos não falam o que sabem, pensou. Calam o que testemunham, essas pequenas guerras travadas no curso de poucas horas.  Tinha lido que expressavam uma relação entre coisa e palavra, mas não sabia se concordava com que um mundo e outro andassem juntos, de mãos dadas, som e sentido. Pra ele objetos continuavam pertencendo ao inanimado, signos em rotação etc. Olhava, e uma cadeira não passava de uma cadeira, uma mesa, uma mesa, uma estante também e por aí vai.  Que os objetos emanassem uma áurea e que essa áurea denunciasse este ou aquele espírito de quem vive na casa, disso não tinha dúvida. Mas como? Que propriedade torna as coisas seres que pensam uma outra sensibilidade? Achava isso um grande exagero, coisa de quem excedia o campo da reflexão.  E se algo o aborrece é excesso de pensament...

Intervalo

Escrevo num interregno, um tempo em suspenso que não parece tempo nenhum. Hoje, primeiro dia, estive às voltas com horas vazias, horas cuja consistência carecia de algo que as validasse. Dia e noite alheados a tudo. Li, basicamente. E escrevo agora mais por insistência que por gosto. Passa das onze da noite, horário em que normalmente chegaria cansado do trabalho e me esticaria no chão até adormecer vendo televisão. Não tenho sono. Do outro lado do mundo é madrugada. O romance fala da separação entre um filho e uma mãe que se apaixona por um artista. O pai e marido vai embora, atravessado por uma dor sem nome. O filho o acompanha, a contragosto. Mudam-se para Brasília, uma cidade que não conheço. Pai e filho estranhando-se, mas cada vez mais necessitados um do outro para suprir a falta da mãe e esposa. Dois desenraizados num lugar de seres volantes. Amanhã sairei mais cedo. Talvez faça sol. Hoje amanheceu nublado, um tempo frio que não me agrada. Um pano de fundo de trist...

Uma tarde assim

Uma tarde que passa arrastada, que antecede uma segunda e uma terça e também uma quarta, que é uma antes do fim do dia e outra no começo, que se desfaz lentamente e logo se recupera. Uma tarde assim não custa a passar. Uma tarde assim dura por quanto tempo for necessário.  Dez longas tardes passadas em espera. Andar pela casa, recolher roupas, enfiá-las na máquina goela abaixo para que percam as marcas e os cheiros da semana, para que voltem limpas de toda nódoa, para que estejam novamente prontas ao uso, para que se embaracem mais uma vez nesse cheiro que nunca passa.  As nódoas, a areia nos bolsos que trazemos da praia, as marcas de elástico das roupas na virilha e pernas, o bronzeado de mangas e golas, os cortes nos dorsos porque não aprendemos ainda a segurar pedras sem deixá-las cair. Os grãos depois no chão do banheiro. O sol que espantamos com água e xampu, cabelos embaralhados como cartas e ombros queimados como se postos para secar no quintal a ver s...

Lugares onde a água se junta a outra água

Passo horas assim, admirado porque leio Carver. Todos os seus poemas de um livrinho com composições reunidas por ele significam tanto o gratuito e banal quanto o extraordinário e cheio de propósito. Seja falando de uma fonte, um regato, um riacho cuja boca se abre e engole a água anterior. Seja narrando o encontro com uma aeromoça de mãos vistosas que se fixaram em sua memória, agarrando-a durante um voo sobre Mato Grosso. Carver escreve sobre um poeta que lia e levava pra cama. Adormecia segurando seu livro, acordava e ele estava lá. Era o lugar seguro, o sossego, o ponto de partida e chegada, tudo no mesmo lugar. Tenho feito o mesmo.  Uma vez lhe perguntaram o que fazer da vida, qual o seu segredo, esse tipo de pergunta que fazem a poetas que de repente parecem como esses gatos sossegados num canto da sala a observar o movimento de pernas e braços e som desarticulado que sai das nossas bocas.  Ele respondeu: preste atenção.  Não posso imaginar outra ...

Cemitério

Hoje talvez chegue diferente ao cemitério.  Na última vez, lembro de ter me mantido distante. Era agosto, talvez setembro, e brinquei com minha filha entre túmulos. Corremos um pouco. Logo encontramos um que tinha uma casinha e, dentro dela, duas bonecas.  Cozinha, sala, área de lazer, quartinho de criança e uma cama. Ficamos um tempo ali olhando os móveis e os confrontando com a foto da menina morta. Não recordo seu nome, apenas que tinha quatro anos.  Quis explicar a minha filha por que havia um brinquedo no cemitério. Não soube dizer se era certo nos divertirmos com a casinha de bonecas que enfeitava a lápide. De todo modo, era a única distração para uma criança que visita um lugar como esse.  Mas isso foi antes. Hoje voltaremos lá. É outro tempo, diferente de agosto e setembro, quando me sentia suspenso por um fio que ameaçava se romper a qualquer momento. Foi um alívio estar entre pessoas já plenamente passado.  Hoje talvez encontremos outras ...

Corrida espacial

Sessenta anos atrás, uma cadela foi enviada ao espaço pra que vagasse por cinco dias ou cinco horas.  Autoridades divergem sobre quanto tempo Laika – era o nome dela – teria suportado antes de morrer. O barulho, o calor, tudo era excessivo para o organismo frágil de uma cachorra lançada ao infinito. De todo modo, era o marco de uma disputa entre potências, e num caso assim fica claro que o que menos importa é o que pensa ou quer um bicho sem arbítrio. Seguiram-se novos episódios de tensão nessa corrida espacial. Lançamentos de satélites, cosmonautas aventureiros e, finalmente, a chegada do homem à Lua. Há uma dúzia de filmes sobre os passos da humanidade no espaço, grandes ou pequenos. Nenhum deles é sobre as últimas horas de Laika, que talvez vague ainda hoje como poeira, estrela, como rastro de meteoro colidindo com outros pedaços de mundos em decomposição. Disseram que havia comida suficiente para poucos dias. Então, desde o início, a intenção era projetar ...