Pular para o conteúdo principal

Intervalo

Escrevo num interregno, um tempo em suspenso que não parece tempo nenhum. Hoje, primeiro dia, estive às voltas com horas vazias, horas cuja consistência carecia de algo que as validasse. Dia e noite alheados a tudo.

Li, basicamente. E escrevo agora mais por insistência que por gosto. Passa das onze da noite, horário em que normalmente chegaria cansado do trabalho e me esticaria no chão até adormecer vendo televisão. Não tenho sono. Do outro lado do mundo é madrugada.

O romance fala da separação entre um filho e uma mãe que se apaixona por um artista. O pai e marido vai embora, atravessado por uma dor sem nome. O filho o acompanha, a contragosto. Mudam-se para Brasília, uma cidade que não conheço. Pai e filho estranhando-se, mas cada vez mais necessitados um do outro para suprir a falta da mãe e esposa. Dois desenraizados num lugar de seres volantes.

Amanhã sairei mais cedo. Talvez faça sol. Hoje amanheceu nublado, um tempo frio que não me agrada. Um pano de fundo de tristeza que recobria tudo. Demorei a levantar e preparar o café. As dores nos ombros passaram. Banho de mar.

Antes era diferente. Esperava sempre pelos meses de inverno, de janeiro a maio, quando sentia uma alegria imensa e gratuita de estar na rua e ver que tudo escurecia.

Agora espero o sol. Luz, calor e o vento de setembro a novembro. Daqui a pouco tudo passa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas