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Fotografia

Fotografa o interior de apartamentos. Aquele, por exemplo. Um gato, sofá, discos, cinzeiro e uns poucos livros na sala. Cadeira e mesa. Abajur, jogos de montar e cartas.

Objetos não falam o que sabem, pensou. Calam o que testemunham, essas pequenas guerras travadas no curso de poucas horas. 

Tinha lido que expressavam uma relação entre coisa e palavra, mas não sabia se concordava com que um mundo e outro andassem juntos, de mãos dadas, som e sentido. Pra ele objetos continuavam pertencendo ao inanimado, signos em rotação etc. Olhava, e uma cadeira não passava de uma cadeira, uma mesa, uma mesa, uma estante também e por aí vai. 

Que os objetos emanassem uma áurea e que essa áurea denunciasse este ou aquele espírito de quem vive na casa, disso não tinha dúvida. Mas como? Que propriedade torna as coisas seres que pensam uma outra sensibilidade? Achava isso um grande exagero, coisa de quem excedia o campo da reflexão. 

E se algo o aborrece é excesso de pensamento. 

Daí a supor que a cama e os lençóis falariam, que os restos de comida sobre a mesa e as almofadas atiradas ao chão em pressa de amor saberiam de tudo mais que ele mesmo? Nada disso o convencia de que, se fotografasse aquele lugar sob determinado ângulo e luz, um fim de tarde ou começo de noite, esse momento de passagem significaria mais do que era. 

O que a paisagem fixada em imagem diria?

Diria o que agora silencia, diria o que não sabe, diria o que é óbvio e se reflete até mesmo numa colcha enrodilhada feito um gato preguiçoso. Diria o que sabe o sofá estático, mudo. 

Objetos e pessoas coincidem talvez no mistério que carregam quando decidem silenciar. 

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