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Contra o mar

Uma história que fosse contra o mar, a metáfora, o mar, a materialidade, o mar, a presença forte que se desfaz, o mar, essa massa contra a qual a cidade cresceu, à revelia do qual se expandiu e à qual hoje se volta, numa retomada histórica, espécie de reencontro com o que de início pareceu errado ou apenas desimportante, o mar todo cheio desses clichês marítimos, uma fronteira na qual a gente se dissolve ou procura contato com essa fluidez quase uterina da qual somos expulsos e para a qual voltamos sempre que damos com a cara na parede, o mar como quintessência de uma beleza natural sem par em qualquer outro tipo de geografia, o mar inigualável em sua majestosa indiferença e toda essa bobajada que vem à cabeça quando a gente se põe de frente e para e procura responder a cada uma dessas perguntas sem resposta que perseguem desde que o mundo é mundo. Nunca tinha precisado tanto do mar como agora, uma presença que é ausência e vice-versa, nunca havia escapado ao mar como neste dia, ...

A pós-verdade

Cheguei tarde pra festa da “pós-verdade”, vocábulo do ano escolhido pelos lexicógrafos dos Dicionários Oxford. Antes, uma carinha chorando de tanto rir, um emoji, que já tinha dado o que falar ao ser alçada como palavra-síntese de 2015. Agora, um conceito pra lá de distópico. Não encontro expressão que defina melhor uma quadra na qual a demagogia assenhorou-se de tudo. E o populismo é regra. E o império do gosto é inexpugnável. E qualquer tipo de crítica é logo classificado como elitismo. E por aí vai, do gosto ao post-truth, numa estradinha contínua e acidentada, mas que leva invariavelmente ao indivíduo e sua ilusão de retomada de controle, num esfacelamento de qualquer noção de coletividade, aprofundando sempre o insulamento que se confunde com liberdade. Daí o Brexit, a falência do acordo de paz com as Farcs etc. As pessoas estão insatisfeitas e profundamente desconfiadas quando o assunto são os poderes, entre os quais a imprensa, espécie de poder “café com leite”, ma...

Voto

Meia noite e quinze, então já é domingo, esse dia estranho em que milhares – milhões – de pessoas têm de tomar uma decisão, por uma razão ou outra. Escolher um lado, um nome pra chamar de melhor ou pior, mas sempre em relação a outro nome. Logo, a outro grupo de eleitores, cujas motivações são igualmente legítimas e sinceras e honestas – presumidamente honestas – quanto as do primeiro grupo. Tudo isso em tese. Tudo isso em tese. Na prática, há sempre um veja bem, meu bem. Hoje não é diferente. Há razões pra tantos gostos estranhos, e às vezes o gosto normal esconde uma fruta podre. Como o hábito saudável, o corrupto. Há razões que nenhuma razão explica, disse Drummond ou foi Clarice Lispector ou alguém se passando por Drummond ou Clarice num perfil falso. Um mal-entendido que se desfaz com o Google. Voltando. Esse dia estranho. O voto. A certeza de que influencia no jogo, que decide, que contribui para formar esse quadro que se desenha algumas horas depois, votos ...

Espera

Fico dando voltas, como alguém na esquina que espera. Sem saber, espera. Dou mais uma volta. E outra. E mais uma. Espero que aconteça. Finalmente, vai acontecer. Espero mais um pouco. Não acontece ainda. Penso que não chegou a hora, a hora certa, a hora que cada coisa escolhe para ser o que de fato é. Aquela hora em que olhamos e pensamos: tinha de ser. Não era. Ainda. Não, por enquanto. Fingiu esperar mais um pouco antes de ir embora e se perguntar se não deveria ter esperado além do tempo que as pessoas habitualmente esperam algo pelo qual já não têm esperança. Esperar por birra, por farra, porque não é como qualquer um, e, além do mais, esperança é um conceito quase cristão. Ele não era. Não é cristão. Então esperou. Depois foi embora.

O dia do mês

Vamos ver se consegue agora que já não tem tanto tempo, apenas o tempo que falta, e o tempo que falta é sempre esse ponto indeciso entre o que passou e o que vem pela frente. Que época difícil, que ano difícil, que semana idem, ontem mesmo foi um dia bem complicado, mas hoje talvez não seja – acabou sendo.    Ontem saí e dei dois passos adiante, quando queria mesmo era recusar, andar pra trás, recuar no tempo e no espaço, não um retrocesso cronológico, tampouco material, mas regredir num certo aspecto que até acho difícil de explicar. Uma volta a algo que nem existe mais, talvez nunca tenha existido, um retorno a um estado de latência, de potência, nada acontecia ainda, apenas semente. Bobagem, penso depois, porque todo estado é resolução e a verdade de um anterior, logo, nada de quadros estáticos em que vislumbramos o mundo como acontecimento por vir. Tudo está sempre vindo. A gente dá de cara com as coisas porque quer. Porque anda desatento. Porque tenta desvia...

Parágrafo noturno

Que se escreva não à noite, mas durante o dia, por alguém que acredite ser noite e não dia, que troque as horas e as luzes, que confunda claro e escuro e de vez em quando até nem veja diferença entre uma coisa e outra, estando e não estando, alguém cuja falta de capacidade para distinguir mudanças climáticas e pequenas alterações não seja um embaraço, um fardo, mas um motivo de alegria, um contentamento qualquer como dinheiro encontrado no bolso da calça dobrada no espaldar da cadeira. Um parágrafo assim, feito ao avesso, desengonçado, mais fabulação que história, mais acaso e desencontro que fio e caminho, mais lusco-fusco que meio dia ou noite já bastante avançada. 

Travessia

Outro exemplo é o da faixa em X do cruzamento das avenidas da Universidade e 13 de Maio, um trecho de intenso ir e vir formado por diagonais que partem de extremos diferentes e se encontram no meio da rua, num pedaço de asfalto onde só cabem paradas quando de manifestações estudantis, e aí, sim, é permitida a pausa no tráfego, a interrupção do fluxo, a falha do deslocamento. Sem isso, o encontro da faixa cruzada é uma casualidade, resultado de uma lógica probabilística – duas pessoas caminhando a partir de pontos diferentes em velocidades diferentes e sentidos contrários podem se encontrar no exato momento em que cruzam o corredor estudantil, no centro da faixa, no X do X que traçaram para facilitar a travessia de pedestres não de ponta a ponta, mas de extremos a extremos.