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A pós-verdade



Cheguei tarde pra festa da “pós-verdade”, vocábulo do ano escolhido pelos lexicógrafos dos Dicionários Oxford. Antes, uma carinha chorando de tanto rir, um emoji, que já tinha dado o que falar ao ser alçada como palavra-síntese de 2015.

Agora, um conceito pra lá de distópico. Não encontro expressão que defina melhor uma quadra na qual a demagogia assenhorou-se de tudo. E o populismo é regra. E o império do gosto é inexpugnável. E qualquer tipo de crítica é logo classificado como elitismo. E por aí vai, do gosto ao post-truth, numa estradinha contínua e acidentada, mas que leva invariavelmente ao indivíduo e sua ilusão de retomada de controle, num esfacelamento de qualquer noção de coletividade, aprofundando sempre o insulamento que se confunde com liberdade.

Daí o Brexit, a falência do acordo de paz com as Farcs etc. As pessoas estão insatisfeitas e profundamente desconfiadas quando o assunto são os poderes, entre os quais a imprensa, espécie de poder “café com leite”, mas não apenas ela. Nossa época está separando o joio do trigo - e escolhendo o joio.   

Segundo eles, os gramáticos de Oxford, a verdade tem tanto peso hoje em dia quanto as baboseiras que as pessoas falam nas redes sociais, tudo equivalendo-se como discurso ou narrativa ou outra dessas palavras genéricas que designam o modo pelo qual cada um se informa ou se convence de que algo é verdadeiro.

A noção em si de verdade, porém, sofreu uma mutação. Ainda é cedo pra avaliar, mas o real está se adelgaçando ainda mais. A ponto de se romper de vez. O que surge no lugar do real? Surge a narrativa. Surge a versão. Surge o gosto. Tudo que se adeque às minhas necessidades. O supremo hedonismo aliado de uma cidadania prêt-à-porter. 

Então, o que digo, dependendo de como diga, dos elementos que utilize e dos meios através dos quais eu faça circular, pode ter efeitos mais eficazes como mensagem do que uma dessas reportagens cheias de informações exaustivamente checadas que os jornais – alguns, pelo menos – ainda insistem em publicar. E que custam caro. E precisam de certo letramento para se ter pleno acesso. 

Entenderam a gravidade? Nossa verdade, a minha e a das pessoas com quem eu normalmente lido e partilho o dia a dia, é mediada por um código que talvez esteja dificultando a entrada de um amplo contingente de pessoas. Talvez as mesmas que tenham votado em Trump ou acreditado que a permanência na União Europeia custaria quatrocentos e cinquenta milhões de euros à Grã-Bretanha.

Logo, a verdade é cara e nem sempre imediatamente inteligível. A mentira é barata, quase gratuita, e pode ser propagada recorrendo-se a qualquer tipo de registro linguístico. Parece mesmo condição para seu sucesso o baixo ou mesmo nenhum teor de dificuldade para sua compreensão. Na era da pós-verdade, a mentira é uma sentença disparada como flecha: papa apoia Trump, latinos roubam nossos empregos, Doria vai aumentar a velocidade das marginais, Temer salvará a economia etc. etc. Não carece de verificação nem complexidade. A mensagem é essa. Replique-a indefinidamente.  

Por quê? Todo mundo arriscou seus palpites e colaborou com seus gravetos sobre a crise das "instituições", esse amplo espectro de conceitos. É à sombra dessa crise que prospera a pantanosa era da pós-verdade. Ou a temporada de vale-tudo. Ou que outro nome tenha. Com que armas a gente combate essa treva? Não faço ideia. Talvez não tenhamos inventado ainda armas eficientes contra isso tudo. 

Acho, porém, que a pós-verdade começou com algo mais simples e inofensivo: a ideia disseminada de que o gosto rege as coisas. Antes, saíram os críticos e ficou ele, o gosto, monarcazinho absolutista reinando sobre o rigor e os critérios discutíveis e subjetivos de gente presumidamente escolada em tal ou qual assunto que escrevia periodicamente nos jornais/revistas e cuja opinião era levada em consideração por outras pessoas, que, por sua vez, distribuíam essa opinião empacotada, acrescentando-lhe ou não suas próprias notas, a um número razoável de pessoas.

O esquema é pobre, eu sei, mas era mais ou menos assim que a maioria das pessoas se informava ou conhecia antes da internet e , mais precisamente, das redes sociais.

Aí veio o gosto, que é democrático e popular. É o torneio da falta de compromisso. Da mesma maneira que a pós-verdade, que pegou os jornalões e todo mundo de calças curtas, principalmente Obama e Hillary Clinton. O gosto é direto, fundado no castelo da liberdade suprema e no poder de decisão que cada pessoa conserva. 

O mesmo que agora catapultou um magnata mentiroso para a presidência dos EUA. Puro gosto. E rejeição ao gosto dos que comandavam o país até então. 


A capacidade de influir sobre o gosto alheio migrou dos grandes veículos - ou dos grandes meios, das instituições que balizam o regime democrático - para a complexa nebulosa da internet, onde a imprensa ainda rodopia sem saber que direção tomar e os partidos entram no meio do tiroteio dispostos a matar ou morrer - a maioria tem morrido. 

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