Pular para o conteúdo principal

Contra o mar

Uma história que fosse contra o mar, a metáfora, o mar, a materialidade, o mar, a presença forte que se desfaz, o mar, essa massa contra a qual a cidade cresceu, à revelia do qual se expandiu e à qual hoje se volta, numa retomada histórica, espécie de reencontro com o que de início pareceu errado ou apenas desimportante, o mar todo cheio desses clichês marítimos, uma fronteira na qual a gente se dissolve ou procura contato com essa fluidez quase uterina da qual somos expulsos e para a qual voltamos sempre que damos com a cara na parede, o mar como quintessência de uma beleza natural sem par em qualquer outro tipo de geografia, o mar inigualável em sua majestosa indiferença e toda essa bobajada que vem à cabeça quando a gente se põe de frente e para e procura responder a cada uma dessas perguntas sem resposta que perseguem desde que o mundo é mundo.

Nunca tinha precisado tanto do mar como agora, uma presença que é ausência e vice-versa, nunca havia escapado ao mar como neste dia, dele fugindo mais que, quando menino, certa vez, ao ir se aproximando o fim de semana da festa e ele, como dançarino, obviamente tinha de dançar ao lado da garota de quem todos sabiam que ele gostava, enfiou-se no quarto, de lá não saindo pelas duas horas seguintes.  

A garota dançou sem ele. Levou três quedas. Nunca mais se falaram.

Mas era a vergonha que o empurrava pra longe. Feito o mar agora, a vergonha afastava, mas também puxava de volta, feito essa onda fraca que depois surpreende sugando com força os pés, e desequilibra e desorienta.

Então, em casa, pensava: e se fosse em frente? E se fosse ao mar? E se caísse? Morreria da queda?

Não sabe até hoje. 

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d