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O dia do mês

Vamos ver se consegue agora que já não tem tanto tempo, apenas o tempo que falta, e o tempo que falta é sempre esse ponto indeciso entre o que passou e o que vem pela frente.

Que época difícil, que ano difícil, que semana idem, ontem mesmo foi um dia bem complicado, mas hoje talvez não seja – acabou sendo.  

 Ontem saí e dei dois passos adiante, quando queria mesmo era recusar, andar pra trás, recuar no tempo e no espaço, não um retrocesso cronológico, tampouco material, mas regredir num certo aspecto que até acho difícil de explicar. Uma volta a algo que nem existe mais, talvez nunca tenha existido, um retorno a um estado de latência, de potência, nada acontecia ainda, apenas semente.

Bobagem, penso depois, porque todo estado é resolução e a verdade de um anterior, logo, nada de quadros estáticos em que vislumbramos o mundo como acontecimento por vir. Tudo está sempre vindo. A gente dá de cara com as coisas porque quer. Porque anda desatento. Porque tenta desviar e não consegue. Porque se choca com objetos mais pesados ou mais rápidos que nós mesmos.

A gente se vê num rodamoinho sem saber que está no centro.  

Ia ao cinema, mas desisti no caminho. Fumei olhando um casal discutir se entravam numa festa ou seguiam pra outro lugar onde os esperavam alguns amigos.

Uma cena trivial, era disso que precisava. Pessoas saindo da igreja, um homem empurrando um carro de material reciclável, o termômetro indicando 25 graus Celsius e a notícia do assalto a um mercadinho aqui perto.

E sempre essa dúvida por trás de tudo, essa segunda vida, essa segunda pele, essa segunda umidade que se sente ao longe. Não há recuo nem queda nem sinal de fumaça que faça desaparecer. 

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