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Se você quiser ver

1.   Dizem que a gente encontra sempre os livros que procura. Isso é apenas parcialmente verdadeiro. No mais das vezes, a gente sequer sabe o que procura, incluindo livros, até finalmente encontrar.  2.   Entre uma coisa e outra há tanta ciência inexata que é melhor colocar o assunto um pouco de lado e passar ao que está  de fato   ao alcance: o que não encontrar, para onde não olhar, quais distrações evitar. No fim das contas, tudo se equivale de alguma maneira, quer na complexidade, quer nas aparências, e escolher talvez seja tão difícil quanto não escolher. E carregar tão complicado quanto deixar pra trás. Isso também é apenas parcialmente verdadeiro.    3.   Encontrei Se você quiser ver uma baleia numa tarde de sábado de outubro. Não encontrei, fui encontrado. Estava distraído na livraria quando uma moça muito bonita me cutucou e disse: olha que lindo. Olhei, e era mesmo lindo. Depois da leitura, porém, concordamos imediatament...

Guarda-chuva

Uma última coisa: não vá pensando que estou querendo esticar ainda mais a conversa, que volto porque passo dos limites, que a insistência é uma dádiva, que, não faz tanto tempo assim, eu fui embora e acabei não indo além da esquina etc. Engula esse choro, eu diria se fosse uma mãe bem cruel e você uma criança a quem todos os amiguinhos tivessem deixado pra trás. É que preciso dizer, expressar, entende? Não basta formular, tenho que materializar a pergunta, recriá-la no tempo e no espaço, abri-la como um guarda-chuvas ainda que não esteja chovendo, me proteger dos golpes ainda que não caiam canivetes. Eu faço perguntas para me abrigar da chuva. Não é preocupação com as roupas, é comigo.   Vamos, não tenho tanto tempo. Passou do meu horário e a aula já começa, não quero perder. A prova oral é na semana que vem. Esse sorriso... quer dizer o quê? Não, é uma pergunta de verdade, não embute nada, não é capciosa. Não esconde outra intenção, não quero saber de nada além d...

Sobre a crueldade

Oi, como vai? Posso puxar uma cadeira? Posso contar uma história? É, isso, só pra quebrar o gelo. Acabo de ler sobre o lado cruel de animais considerados amáveis; fofos num sentido genérico.  Focas, filhotes de lontras. Pequenos animais para os quais olhamos e logo imaginamos cenas bonitas, aconchego, calor, temos vontade de abraçar, de beijar. Então suspiramos e sonhamos alto, “bem, seria maravilhoso se todos se adorassem como as lontras se adoram”.  Enfim, toda sorte de bons sentimentos. Pois bem. Esses animais considerados fofos e amáveis são na verdade muito cruéis, foi o que acabei de ler. E, por alguma razão, isso não me causou nenhuma surpresa. Claro, não apenas eles. Se há uma justiça no mundo é que a crueldade foi democraticamente distribuída. Quero dizer, não é estranho que os tipos mais inofensivos sejam capazes de estuprar filhotes de outras espécies até a morte e continuar chafurdando nos corpos ainda que já estejam caindo aos pedaços de tão ...

A outra mão

Vamos falar baixinho sobre o tempo conturbado, pode ser? O que acha de tanto barulho, consegue respirar e bater palmas ao mesmo tempo, tem certeza de que a próxima rua é a rua certa, o que fechar primeiro, os olhos ou a porta, qual o último pensamento antes de dormir, como reage ao silêncio? São perguntas pra checar a frequência do pulso e assim garantir que os resultados do teste sejam os mais fidedignos possível. Agora, por favor, vamos simular uma conversa normal sobre o pugilato das ideias feitas, a complexa engrenagem que alimenta a crueldade dos amigos, o grau aceitável da indiferença, a maneira menos torpe de julgar e condenar outra pessoa. Podemos começar? Não, ainda não? Enquanto não começamos, gostaria que virasse pra trás na cadeira. Está vendo aquela janela? Ela descortina uma paisagem urbana degradada. Está vendo a garagem? As pessoas na garagem? O que fazem as pessoas? Limpam, transportam objetos de um lugar para outro, ouvem música, eventualmente riem de al...

Xxxxx

“Uma tristeza crônica de origem difusa.” Eu quis rir quando li, mas esse era eu  quatro ou cinco anos atrás indo e vindo pelas ruas de uma cidade xadrez banhada por águas cuja balneabilidade varia conforme o número de descargas que a rede hoteleira dá.  Baita autodiagnóstico.   Escrevi isso num caderninho vagabundo de arame. Era 2009, tinha 29, primeiro casamento, sem filhos, trabalhava e estudava, sem dinheiro, sem videogame, sem rodo de pia. Um quase fodido que gastava as melhores horas da vida em cima dos livros, e isso era bom. Andava pouco e sozinho, e isso também era bom. Nessas poucas andanças, escutava três músicas em looping infinito, não lembro quais, mas era como se, ao ouvi-las, eu enxergasse o mundo de longe. Nesse mundo visto de longe, eu me flagrava voltando pra casa com uma expressão da qual agora eu só consigo gargalhar.  Essas três músicas me empurraram pra perto de tudo que eu queria e não tinha coragem, então acabava evitando p...

Tudo que há nesse intervalo

O que não disse ainda é que, como o sorriso, o abraço divide-se em muitos tipos, cada um deles correspondente a diferentes pessoas, cada pessoa mais inclinada a no máximo duas categorias de abraço, uma formal e outra informal, podendo combiná-las e recombiná-las a seus próprios gosto, desejo e vontade. Por ordem de lembrança, há as pessoas que abraçam inteiras, as que abraçam de banda, as que mantêm uma distância protocolar do abraçado, as que jamais abraçam, as que complementam o abraço com um beijo, as que premiam o abraçado com um beijo e uma carícia no rosto, as que deitam a cabeça no ombro de quem abraçam, as que grudam peitos e barriga num enlace que é quase o princípio de outro abraço, as que abraçam pela cintura, as que abraçam por cima dos braços, as que abraçam na diagonal, as que abraçam deitadas, as que abraçam à força, as que abraçam com força, as que chegam a um passo do abraço, as que invejam o abraço, as que desistem do abraço, as que abraçam sem braços, as ...

E.B.E aporta no litoral

Começo agora um exercício.  Dizem os especialistas: domingo é de longe o melhor dia para realizar pequenos consertos nas zonas habitáveis da casa. Isso sem contar a programação televisiva, tão reveladora da vida inteligente quanto o ralo do banheiro é dos costumes de um inquilino. Esse exercício, uma fisioterapia sem a parte terapêutica, tem a finalidade de recuperar os movimentos naturais do corpo, soterrados por falta de prática, preguiça e uma crença excessiva na inesgotabilidade do tempo. Sua metodologia é a de sempre: tentativa e erro. Primeiro os dedos, esses miseráveis do hábito, anões da terra média. Apontam sempre o mesmo caminho. Cavam a rocha dura como ninguém. Escória dáctila. Agora é diferente. Um de cada vez, sem tanta pressa, vão navegar no contrafluxo das horas bem gastas. Estão obrigados a mostrar outras direções. Querem sempre alcançar, prender, beliscar, perfurar e deslizar, empurrar e massagear. Não se satisfazem com pouco. Às escondidas, rumin...