Pular para o conteúdo principal

Xxxxx



“Uma tristeza crônica de origem difusa.” Eu quis rir quando li, mas esse era eu quatro ou cinco anos atrás indo e vindo pelas ruas de uma cidade xadrez banhada por águas cuja balneabilidade varia conforme o número de descargas que a rede hoteleira dá. Baita autodiagnóstico.  

Escrevi isso num caderninho vagabundo de arame. Era 2009, tinha 29, primeiro casamento, sem filhos, trabalhava e estudava, sem dinheiro, sem videogame, sem rodo de pia. Um quase fodido que gastava as melhores horas da vida em cima dos livros, e isso era bom. Andava pouco e sozinho, e isso também era bom.

Nessas poucas andanças, escutava três músicas em looping infinito, não lembro quais, mas era como se, ao ouvi-las, eu enxergasse o mundo de longe. Nesse mundo visto de longe, eu me flagrava voltando pra casa com uma expressão da qual agora eu só consigo gargalhar. 

Essas três músicas me empurraram pra perto de tudo que eu queria e não tinha coragem, então acabava evitando por medo e também por acreditar que, de uma forma ou de outra... Eu era basicamente uma testemunha de Jeová que trocou Jesus pela fé cega na irracionalidade que preside fenômenos que eu não entendia. 

Sempre acreditei na eficiência da desgovernabilidade como força-motriz e agente ativo de processos dos quais buscamos fugir, ou crer que fugimos. Fugir, a rigor, é uma impossibilidade. Ninguém escapa nem foge. No máximo pede uma cerveja e espera no balcão a noite inteira até que tudo fecha e as luzes apagam. Tecnicamente, isso ainda não é fugir.   

Então era isso que fazia, e quando digo “era isso que fazia”, entendam que não tenho tanta ideia de para onde eu tentava ir, nem naquele momento, nem agora, nem depois de amanhã. Ouvia músicas, sentia tontura, experiências de voo simulado fora do corpo avaliando cada passa dado, direção, velocidade. Eu me reprovava em todos os quesitos. 

Naquele ano, 2009, eu só desejava que qualquer caminhada de um ponto A a um ponto B consumisse o mesmo tempo que Saturno leva para dar uma volta no Sol.   

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...