Pular para o conteúdo principal

Postagens

Cair três vezes

Hoje talvez não fosse o dia certo para ler Diário da queda. Sem dar importância a isso, liguei o computador, pluguei a internet na tomada e resolvi então que ainda podia escrever algo nesse restinho de domingo, mas o quê, pensei, e decidi que falaria desse livro incrível do Michel Laub.   Depois de concluir o romance, o sentimento era de estar às voltas com o conteúdo visceral de três corpos, as dores de uma família, as manobras domésticas, por assim dizer, e isso nem sempre é algo agradável. Isso quase sempre é muito desagradável pelo que projeta da nossa própria história e, por conseguinte, da própria família. O narrador de Laub expunha-se cruamente. E o domingo é um dia mais para as amenidades. Pensem nesse triângulo traumático formado por avô, pai e filho em Diário da queda. É um fardo que o leitor só deixa descansar um pouquinho na derradeira linha, e olhe lá, e isso também se confronta com o espírito pouco voluntarioso do domingo.   Pensem ainda que o...

Sobre "Divórcio", romance de Ricardo Lísias

Crédito da foto:    Fernanda Fiamoncini De ontem pra hoje, praticamente não fiz outra coisa senão ler Divórcio, novo romance do Ricardo Lísias, autor de O clube dos suicidas e O livro dos mandarins etc. Entre 23 horas e 4 da manhã, atravessei uma maratona de frases distribuídas em 240 páginas que se despedaçavam do corpo do protagonista, também chamado Ricardo Lísias, como partes da fuselagem de um avião que se desfaz ao cair de uma altura incrível, ameaçando pegar fogo antes mesmo de tocar o chão. Foi assim que me senti o tempo inteiro enquanto lia Divórcio, um astronauta cuja roupa despressuriza e cai da corda bamba, um aviãozinho de papel de repente colocado em pleno vôo do alto de um prédio, um bólido em chamas desaparecendo no contato com a atmosfera extrema de um planeta estranho. Um corpo sem epiderme, nu, exposto.    Fui atingido. É impossível não ser. Divórcio, história de traição, amor e vaidade, é uma leitura em queda, vertiginosa, ant...

Catecismo da concha

Pensando na carência de mitologia da e sobre a cidade, lembrei imediatamente do Monza do Amor, um brinquedo literário entre o sério e a farsa, um autoengano revelador. Mara Hope do asfalto à deriva na própria ferrugem, o Monza é também o ponto de convergência de uma cadeia de acontecimentos que se desdobra no tempo e no espaço.  Envolve jovens, adultos e velhos, polícia e guardas noturnos, vizinhança e entregadores de pizza, os verdadeiros vigilantes da fortaleza, os únicos a trafegar na contramão. Considerem os agentes que transformam uma cidade no que ela é, no que ainda não é mas será, no que talvez nunca se transforme. Todos passaram pelo Monza e deixaram ali um rastro, uma marca, uma impressão, e é dessa marca rasteira apagada nas bordas que se rememoram as vidas.  O Monza é semelhante à concha totêmica dos meninos da ilha em O senhor das moscas . É através dele que se narra a história de um grupo de pessoas específico: dois homens, três mulheres, um vel...

Coração, encantamento, divórcio

Sobre as leituras que não cabem nas páginas: Meu coração de pedra-pomes , concluído, nada a declarar, exceto a opinião vagamente sincera de que se trata de uma dessas leituras feitas para gente muito diferente de mim e eventualmente até não tão diferente assim, mas refém de uma autoimagem que destoa bastante do que é de fato. O que nos aproxima mais do que nos afasta.   Juliana Frank, autora desse livrinho curto, uma prosa de marteladas e gemedeiras, gozo pulp, delicada, mas ainda assim... sei lá. Diria que é irregular se acreditasse em gente que diz que tal livro ou tal filme é irregular, se acreditasse na irregularidade tanto quanto na regularidade, se acreditasse que continuamos gostando de algo no segundo seguinte depois de falarmos: isto é irregular. Quer dizer, nem uma coisa nem outra. Se me pedissem algo honesto, falaria simplesmente: não é um livro feito pra mim, não gostei por isso (meio verborrágico), por isso (é cheio de um tipo de juventude que n...

Carey Mulligan não vem para jantar

Acabo de ver Carey Mulligan, a atriz, no ônibus, o transporte público. Passava pouco das 13 horas e Carey estava com fome. Disse então que ali perto havia um restaurante bom porque barato, mas ruim porque sem qualidade, quando a Carey, a cobradora do ônibus, que se chama Carey em homenagem à Mariah Carey, a cantora e eventualmente atriz e talvez amante, e não por causa da senhorita Mulligan, como fez questão de se referir à atriz, sugeriu o espetinho de carne do Extra da Aguanambi, que combina muito bem com uma cerveja depois do expediente, naquelas horas em que um homem anda sozinho na calçada somando pequenas e grandes atitudes tomadas ao longo do dia sem conseguir chegar a um resultado satisfatório. Então Carey, a atriz, disse que não comia carne e Carey, a cobradora, se espantou, como consegue, amiga?. Eu simplesmente fecho os olhos bem apertados até eles arranharem a pálpebra e ficarem de costas pra tudo e imagino um pote de sorvete sem gordura e árvores e areia da praia e...

Monza do Amor vs. Racionalismo Cristão

Coral do Racionalismo cristão emenda um sucesso atrás do outro no bailinho da comunidade deísta A quem perguntar se há na cidade um item que supere em mistério o famoso Monza abandonado na avenida desconhecida que à meia-noite, qual um Mara Hope do asfalto, emite sinais amorosos em todas as direções, respondam sim, há, e em seguida acrescentem: o prédio cuja fachada exibe uma frase intrigante, uma frase que desafia sentidos, janelas e hemisférios, uma frase que inspira terrores e suores noturnos em qualquer um. A frase é: RACIONALISMO CRISTÃO. Mas se se trata realmente de uma frase, e de fato tendemos a considerá-la como uma, é de se perguntar: o que faz em tão esquiva edificação? Que papel cumpre nesse complexo jogo de espelhos? E, mais importante, o que o Monza do Amor tem a ver com tudo isso? Esses são enigmas secundários e talvez terciários quando comparados ao mistério que se esconde sob a fachada da construção de tijolos simples da qual jamais se vê uma vivalm...

MEIA MARATONA DO MEIO-FIO (leia antes tópico CÃES DO ALUGUEL)

Vale destacar que, a nível de CAPS LOCK, não pude descobrir o que estava sendo sorteado, ou BINGADO, enfim, qual era a prenda à qual a vizinhança concorria em caso de acertos plenos, ou seja, caso a cartela fosse não apenas inteiramente preenchida, mas entregue na hora certa ao organizador ou alguém que cumprisse essa função nos termos estabelecidos pelo estatuto do BINGO, de modo que, em momento algum, esse ganhador virtual pudesse ser acusado de passar batido, algo triste que acontece com um contingente espantoso de pessoas todos os dias. E o que vem a ser PASSAR BATIDO? Pessoas passarem batido (passarem batidas, passarem abatidas etc.) pela sorte é algo cada vez mais comum na contemporaneidade. Com as novas tecnologias, então, ficam plantadas as condições necessárias à distração. Um exército cotidiano de mentes distraídas deixa as fornalhas da indústria da dispersão toda hora em direção às esquinas da deambulação, às fábricas e aos cursos de graduação e pós. São os t...