Pular para o conteúdo principal

Sobre "Divórcio", romance de Ricardo Lísias



Crédito da foto:  Fernanda Fiamoncini


De ontem pra hoje, praticamente não fiz outra coisa senão ler Divórcio, novo romance do Ricardo Lísias, autor de O clube dos suicidas e O livro dos mandarins etc. Entre 23 horas e 4 da manhã, atravessei uma maratona de frases distribuídas em 240 páginas que se despedaçavam do corpo do protagonista, também chamado Ricardo Lísias, como partes da fuselagem de um avião que se desfaz ao cair de uma altura incrível, ameaçando pegar fogo antes mesmo de tocar o chão.

Foi assim que me senti o tempo inteiro enquanto lia Divórcio, um astronauta cuja roupa despressuriza e cai da corda bamba, um aviãozinho de papel de repente colocado em pleno vôo do alto de um prédio, um bólido em chamas desaparecendo no contato com a atmosfera extrema de um planeta estranho. Um corpo sem epiderme, nu, exposto.   

Fui atingido. É impossível não ser. Divórcio, história de traição, amor e vaidade, é uma leitura em queda, vertiginosa, antigravidade ou multigravidade, que é diferente do efeito de suspensão que imagino resultar da ausência de uma força que nos empurra em direção ao solo. O romance obtém mais ou menos esse efeito: joga-nos para todos os lados.

Divórcio nos pega pela mão e leva a correr uma prova de 15 quilômetros sem qualquer treinamento prévio, do tipo que o próprio autor se permitiu antes de decidir encarar a São Silvestre. Preparem-se para perder o fôlego. Lísias começou a correr para superar a fratura de uma traição com requintes de crueldade. A escrita, que se aproxima do processo de elaboração da dor no ritual de luto, se seguiu aos primeiros treinos em avenidas povoadas por uma fauna à mercê das paixões e do dinheiro.

Pois foi o que Lísias fez: insatisfeito em dividir o romance (um romance?) de autoficção em 15 capítulos que correspondem ao percurso atual de 15 km da São Silvestre, ardilosamente, o escritor miniaturizou e transportou a maratona, de modo que coubesse na extensão do desespero que pretendia contar: o de um homem sob escombros, sem pele, “em carne viva”.

É essa a prova que o leitor terá de atravessar de coração na mão, sobretudo quando se aproxima do final e vê mais perto a linha da chegada: uma hora e vinte minutos. Acabou. Tenho outra pele. Cumpri o plano de treinamento. Posso me considerar um maratonista. “Morro só mais uma vez.”

Ricardo Lísias, o narrador do romance do escritor Ricardo Lísias, foi traído pela ex-mulher após 40 dias de casamento. Ela, uma renomada jornalista cultural cujo nome fica elíptico o tempo inteiro – “a maior jornalista cultural do Brasil”, segundo trechos do fatídico diário reproduzidos pelo autor ao longo da narrativa –, dormiu com um cineasta africano radicado em Paris enquanto cobria o Festival de Cannes de 2011, o mesmo que considerou Lars von Trier persona non grata.

A confissão está, assim como outras passagens eloqüentes, registrada no diário, xerocado e arquivado por Lísias após tê-lo encontrado uma manhã na gaveta da cômoda do quarto do casal. O narrador conta: li tudo de um fôlego. As pernas tremeram. O chão desapareceu. Era a morte, certamente.

Divórcio é o relato desse desfalecimento, da perda de memória, da agonia, da derrota e da gradual recomposição de um mundo que se fragmentou naquele instante em que o diário com anotações sacanas da ex-mulher lhe caiu nas mãos.

Outros trechos da brochura pessoal são igualmente espinhosos, para dizer o mínimo. Neles, a ex-mulher de Lísias, o narrador, lamenta ter se casado com a pessoa certa, sim, mas sem estar apaixonada. Diz ainda que nenhum filho teria orgulho de um pai como ele e que o marido não vivera nada, apenas ficara trancado num quarto, lendo livros. É um homem sem ambição, sem carteira de motorista, sem poupança no banco e sem vontade de comprar um apartamento. E o que ela era? A maior jornalista de cultura do Brasil, uma mulher cujo desabrochar só seria possível em um lugar como a França.

Todavia, Divórcio é bem mais que a narrativa, em (falsa?) chave ficcional, de uma desfiguração do corpo provocada por um trauma. Vista sob a lente política de Ricardo Lísias, a traição é situada em um circuito cultural em que as trocas de favores entre jornalistas e fontes e o escambo de vaidades retroalimentam-se continuamente. O sexo é o motor. A fofoca, uma palavra que tem sempre a seu favor o atenuante lúdico pronto para camuflar os mecanismos de crueldade que a movimentam, é o elemento que articula. Lísias questiona, ora ingenuamente, ora de modo certeiro, a natureza de parte do processo de apuração das informações no jornalismo.  

Ataca profissionais, generaliza, erra. Assume os erros e, pela milésima vez, expõe-se. Xinga a classe dominante, caricaturiza-a, critica a falta de ética predominante em certa porção da cidade de São Paulo, chama os poderosos para a briga. Em suma, atira para muitos lados. Admite isso. 

Admite outros tantos erros. Admite também que, já perto do final, sente não ter dito tudo que tinha para dizer, mas que, passado todo esse tempo desde que descobriu o diário da ex-mulher, conseguiu reerguer-se. Divórcio representa também esse afastamento de outro Lísias, enterrado naquela manhã de agosto de 2011, quando tudo começou.

Se o livro tem algum mérito, diz o narrador, agora ainda mais indissociável do autor, é este: ter possibilitado que eu recuperasse minha pele, que estava em carne viva. 

Para quem quiser ler os dois contos que antecederam Divórcio, passem aqui e ali. Foram publicados por Lísias na revista piauí. A partir deles, as coisas se assentaram, o romance começou a ganhar forma e a história conjugal do autor-narrador-personagem passou de boato ocasional a tema onipresente nas rodas de conversa. Foi também com a publicação desses contos que Ricardo Lísias recebeu as primeiras demonstrações de solidariedade. Era o início da virada do jogo.


Depois de ler as mais de 200 páginas do romance, só tenho mesmo que agradecer: obrigado, Ricardo Lísias, por ter contado essa história. Acho que tudo seria diferente sem ela. 

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...