Hoje talvez não fosse o dia certo para ler Diário da queda. Sem dar importância a isso, liguei o computador, pluguei a internet na tomada e resolvi então que
ainda podia escrever algo nesse restinho de domingo, mas o quê, pensei, e decidi
que falaria desse livro incrível do Michel Laub.
Depois de concluir o romance, o sentimento
era de estar às voltas com o conteúdo visceral de três corpos, as dores de uma
família, as manobras domésticas, por assim dizer, e isso nem sempre é algo
agradável. Isso quase sempre é muito desagradável pelo que projeta da nossa
própria história e, por conseguinte, da própria família. O narrador de Laub
expunha-se cruamente. E o domingo é um dia mais para as amenidades.
Pensem nesse triângulo traumático formado
por avô, pai e filho em Diário da queda.
É um fardo que o leitor só deixa descansar um pouquinho na derradeira linha, e
olhe lá, e isso também se confronta com o espírito pouco voluntarioso do
domingo.
Pensem ainda que o alívio que se segue ao
fim é mais como a reação de alguém que, tendo de executar uma tarefa
desgastante, agradece o fato de tê-la cumprido ao cabo de algum tempo, sem,
todavia, se preocupar com o resultado objetivo, se bom, ruim, ótimo, regular ou
péssimo, mas apenas com a sensação agradável de finalmente ter chegado até ali,
que sufoco, agora estou bem, e pensar que não conseguiria atravessar esse
cipoal de sofrimento, que não iria contornar toda a dor desse rapaz, que não
suportaria vê-lo sucumbir depois de tanta peleja, meu deus.
Exagero nas tintas, claro, e se digo isso é
porque o romance de Laub é uma aventura rumo à intimidade de uma família cujos
laços são revirados por um narrador nada complacente nem disposto a
condescender, coisa que tanto o pai quanto o avô, por razões diferentes, haviam
feito, mas agora o filho parece ter em mente que o terceiro diário da história
que conta – que envolve, por dedução, outros dois diários, um escrito pelo avô,
distante da realidade, outro pelo pai, que pretende recuperar o tempo – deverá
acertar as contas com esse passado marcado por traumas e, mais que isso, pela
repercussão dos traumas na vida das pessoas comuns e, dando um passo adiante,
pela maneira como a memória elabora a matéria da vida e como isso fixa
definitivamente as bases da personalidade sobre a qual nos ergueremos, ainda
que visivelmente tortos, tendendo à queda.
Três diários, três elos consangüíneos, três
traumas, três formas de lidar com o tempo e, por extensão, com o trauma, três
pontas presas a uma história que nasce a partir do morticínio praticado contra
judeus durante a segunda grande guerra e se arrasta no cotidiano da família, do
bairro e da cidade mais de cinqüenta anos depois.
Aviso:
a partir daqui, dou informações comprometedoras sobre o enredo do livro.
Seguindo a trilha aberta pelo próprio
narrador, há duas possibilidades de elaborar esse farto e embaraçoso material que
resulta do fato traumático (suicídio no caso do avô e holocausto no do pai): o
recalque e o enfrentamento.
Menos que enfrentar, porém, o diário do pai
registra a vida apenas na sua superficialidade, acessando uma camada
mais óbvia dos acontecimentos, sem revolver o chão dos problemas. O do avô,
logo entenderemos por quê, dedica-se a acumular verbetes de um dia a dia ideal. No primeiro caso, a vida pescada nas aparências serve de remédio, como mecanismo de retardo ao avanço da demência (Alzheimer). Reter informações, ainda que superficiais, é também uma forma não se perder, de não perder o contato já fragilizado com o mundo, de se presentificar.
No segundo caso, o do avô sobrevivente de um campo de concentração, ex-residente de Auschwitz, dá-se o contrário: o esquecimento é um imperativo da memória. Nem que para tanto seja necessário construir para si mesmo um real fantástico porque radicalmente distante da vida.
E o do filho? O que fala o diário do filho? Uma resposta possível é a que aponta para a possibilidade de renascimento após décadas de traumas e equívocos. O terceiro diário quer apostar na continuidade.
No segundo caso, o do avô sobrevivente de um campo de concentração, ex-residente de Auschwitz, dá-se o contrário: o esquecimento é um imperativo da memória. Nem que para tanto seja necessário construir para si mesmo um real fantástico porque radicalmente distante da vida.
E o do filho? O que fala o diário do filho? Uma resposta possível é a que aponta para a possibilidade de renascimento após décadas de traumas e equívocos. O terceiro diário quer apostar na continuidade.
Ao tratar não somente da queda do título, mas ao
vasculhar e mesmo entremear os muitos baques que o narrador vai expondo, Diário da queda tenta compreender
a dor e o peso que se transfere de geração para geração e, compreendendo-os,
colocar um ponto final nessa correia de transmissão. Ou tentar, pelo menos.