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Passinho

É bastante comum se sentir meio estúpido depois que se entra numa discussão, seja ela qual for. É um sentimento que irmana negros e índios, pardos e brancos, amarelos e encardidos, assalariados e dependentes do Bolsa Família. Sobretudo quando o assunto é da ordem do genérico, do fluido, do subjetivíssimo, calcado em lugares-comuns de uma retórica consuetudinária que, mesmo sem saber direito, vai passando de língua a língua, fazendo pequenos estragos não porque seja necessariamente daninho, mas porque elimina a hipótese de colocar em discussão essa verdade prefigurada, retórica que já vem embalada, pré-cozida, um ponto de vista empacotado: vamos por aqui, é assim, a cidade comporta-se desse modo e não daquele, o fortalezense é estanque, os hábitos estacionaram nos anos 80, é o que vemos repetir-se toda hora, vindo de bocas as mais diversas, cheias dessa certeza que iguala sociologia a alquimia, ciência a carteado, análise e boliche.  Até que uma hora a gente sai um pouco do ...

A função da diplomacia no meio cultural

Congresso de irônicos e diplomáticos elege novo presidente, que, por timidez, mas também por medo, decidiu que talvez fosse melhor ficar de fora do enquadramento do fotógrafo  Se a política é a guerra por outros meios, a “diplomacia cultural” é a continuidade da ironia em âmbito diferente; ambas inviabilizam o debate, anulam a troca de ideias, aniquilam a divergência. A ironia aposta na superabundância do ruído; a diplomacia, na superabundância do silêncio. Uma diverge na arena pública para convergir na privada; a outra converge publicamente para divergir depois, nem sempre pessoalmente, o que a torna, ao menos nesse aspecto, mais nociva que a ironia. Fato é que ambas não estão verdadeiramente interessadas na troca, mas na viabilização de projetos personalistas. Mas há entre os dois procedimentos – o irônico e o diplomático – diferenças claras. Enquanto a ironia recorre ao humor, acusando a superdimensão do ego, a diplomacia despe-se, em aparência, de qualq...

Joaquim Fênix Barbosa audita a alma nacional

O negócio do Joaquim Barbosa é, ao contrário do de Frota, auditar a alma nacional, identificando nela os pontos já necrosados (muitos) e os que ainda parecem ter conserto (muito poucos), e, a par desse raio-x obtido após uma varredura fina, feita a contrapelo, uma varredura sem a qual seria humanamente impossível descobrir nossas mazelas, um processo que se complexifica à medida que avança, uma profunda investigação das instituições e dos homens que as tornam possíveis, prescrever unguentos e beberagens a fim de colocar nos eixos a brasilidade.   Joaquim Fênix Barbosa é, conceitualmente, a reunião, num só corpo, de Saruman e Gandalf, da magia negra (sem preconceito) e da branca, do desinteresse e da paixão. É, por essas razões, um arauto da dubiedade, gene dominante do confiar desconfiando, antropólogo antropofágico.  Joaquim incumbiu-se da tarefa nada fácil de higienizar a morada nativa, esfoliar o congresso, drenar impurezas dos hábitos cotidianos, espargir águ...

O boato como elemento coesivo no contemporâneo

Casal testa limites do boato-arte, forma hipervalorizada de subversão da ordem  Um conceito que merece estudo rápido, porém não apressado, visto que é categoria-chave, é o do boato, a fala que se perde entre mil e um atores, cujo início se desconhece e cujo fim nunca se vislumbra; a enunciação partilhada febrilmente e de teor ora assustador, ora concupiscente, segredada de orelha a orelha, boca a boca, como um dos arcanos de Fátima; password moderno que tem a propriedade de tornar o mensageiro, ainda que involuntário, e a audiência, ainda que inconsciente, membros venerandos dessa esquisita confraria de seres arregimentados mais com base no aleatório e no randômico do que no estatística e algoritmamente seguro.  Essa confraria atende pelo nome óbvio de Boataria.  O boato é a língua da modernidade, da pós, da pré e da vindoura, aquela que sequer se anunciou, a seiva bruta que alimenta os ramos mais distantes da árvore frondosa, os galhos incapazes d...

O negócio das rotinas

Acima, Faulkner, escritor cujas manias e rotinas resumiam-se a fazer a ponta do lápis sempre às 8h45min e jamais escovar os dentes enquanto a vizinha não apagasse as luzes da casa inteira Li recentemente, “é preciso parar enquanto ainda se tem alguma coisa pra dizer”. Parar, nesse caso, significa interromper uma atividade habitual de modo que, ao retomá-la no dia seguinte ou em dois meses ou mesmo cinco anos depois, persista esse sentimento familiar de que algo ainda precisa ser feito, algo precisa ser dito, o pote não secou, há ideias boiando nesse vasilhame que chamamos carinhosamente de nossa vida, o trabalho deve continuar, crie coragem e siga em frente e natureza dará conta do restante. Nunca esgotar nada, foi como interpretei essa frase, que só agora mostra uma ambiguidade antes imperceptível. Esgotar quer dizer ir até o final, lambuzar-se, chafurdar, exaurir, enfastiar-se e todas essas expressões que designam o ato de, mediante os recursos disponíveis, torna...

O dilema da Iracema sincera

A grande maioria das pessoas envolvidas com arte em Fortaleza vive da política da boa vizinhança. Do artigo da amiga Regina no O Povo de hoje. O que quer dizer “política da boa vizinhança”? É algo necessariamente ruim estabelecer com alguém que mora ao lado uma relação amistosa, regiamente desinteressada, fundada em preceitos civilizados, sem os quais damos lugar à beligerância mútua, situação essa que nem sempre rende bons frutos? Há substituto para a camaradagem doméstica que não seja a guerra fria declarada? Estou falando de um meio termo entre a franca bajulação, aquela que aspira a amealhar dividendos da mera proximidade que se desfruta de alguém, um político ou artista, por exemplo, e a postura deliberada de combate, o outro lado dessa moeda podre, comportamento que se caracteriza por agressividade desproporcional e pronto-rancor. Há um caminho intermediário? Existe – insisto na pergunta – “política da boa vizinhança” ou tudo não passa de um arremedo ha...

É possível viver sem ironia?

Infelizmente, o último patriarca da escola não-irônica, instituição cujo programa de estudos dedicava-se somente às manifestações sinceras, não está mais aqui pra responder a pergunta Embora corra sério risco de me ver precocemente rotulado como um diluidor vulgar, incapaz sequer de disfarçar o modismo que decidiu abraçar, espécie moralmente indefensável num mundo em que a originalidade é norma de conduta suprema, confesso meu pecado de antemão: não resisti ao charme do assunto. Resolvi falar de ironia – é possível eliminá-la ou estamos realmente fadados ao enfado que se traveste de esperteza e embota a visada do outro como uma unidade viva tão especial e única no mundo quanto nós mesmos?   Se esse não é o tema da moda, chega bem perto. Digamos que uma parcela considerável da inteligência discute agora formas de superação não apenas do discurso irônico, mas da cultura irônica, da qual as brilhantes analogias e charadas pop que pululam nas redes sociais como bólido...