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O dilema da Iracema sincera



A grande maioria das pessoas envolvidas com arte em Fortaleza vive da política da boa vizinhança. Do artigo da amiga Regina no O Povo de hoje.


O que quer dizer “política da boa vizinhança”? É algo necessariamente ruim estabelecer com alguém que mora ao lado uma relação amistosa, regiamente desinteressada, fundada em preceitos civilizados, sem os quais damos lugar à beligerância mútua, situação essa que nem sempre rende bons frutos?

Há substituto para a camaradagem doméstica que não seja a guerra fria declarada? Estou falando de um meio termo entre a franca bajulação, aquela que aspira a amealhar dividendos da mera proximidade que se desfruta de alguém, um político ou artista, por exemplo, e a postura deliberada de combate, o outro lado dessa moeda podre, comportamento que se caracteriza por agressividade desproporcional e pronto-rancor.

Há um caminho intermediário?

Existe – insisto na pergunta – “política da boa vizinhança” ou tudo não passa de um arremedo habilmente construído a fim de preservar a esteira de cinismo e apatia sobre a qual deslizam os mecanismos constituintes de toda essa engenharia das relações sociais num dado campo de saber (no caso, o artístico), engenharia essa cujo objetivo é franquear cordialmente o acesso às riquezas do capital cultural?

Dizer tudo que se pensa é um antídoto seguro contra o ambiente mesquinho da falsa camaradagem e do elogio estratégico ou as bactérias que habitam o ecossistema da duplicidade enganosa já nascem dotadas dos mecanismos necessários à conversão da coisa autêntica em coisa inautêntica?

Ou ainda: é realmente importante dizer tudo que se pensa? Importante pra quem? É importante pra você? É importante pra mim? É importante pra boa circularidade das ideias, é isso, pro meio cultural, pro circuito produtivo, pra que possamos viver numa campina suficientemente arejada, de modo que nela as ideias surjam mais facilmente e cada um saiba intimamente que pode contar com o outro para lhe jogar toda a verdade na cara quando precisar?

Dizer o que se pensa é importante pra vida?

Com que frequência você diz o que pensa? Às vezes, diariamente, semanalmente, mensalmente, três vezes ao ano, somente nas datas comemorativas mais relevantes ou quando lhe pedem que seja franco e diga rigorosamente o que ocupa a sua cabecinha?  

Em que situações você diz o que pensa? Nas redes sociais, em casa, nos almoços de domingo, na cama, ao lado da namorada ou do namorado, com os filhos enquanto rega as plantas do jardim, no banheiro, no cinema, na fila de espera do supermercado, depois do orgasmo, quando está chateado, quando toca uma música legal, depois de encher a cara ou após o fim de uma relação?

É sumamente importante responder essas perguntas com o disjuntor da honestidade apontando pra cima, o que sinaliza on, o exato oposto de off. 

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