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Passinho



É bastante comum se sentir meio estúpido depois que se entra numa discussão, seja ela qual for. É um sentimento que irmana negros e índios, pardos e brancos, amarelos e encardidos, assalariados e dependentes do Bolsa Família. Sobretudo quando o assunto é da ordem do genérico, do fluido, do subjetivíssimo, calcado em lugares-comuns de uma retórica consuetudinária que, mesmo sem saber direito, vai passando de língua a língua, fazendo pequenos estragos não porque seja necessariamente daninho, mas porque elimina a hipótese de colocar em discussão essa verdade prefigurada, retórica que já vem embalada, pré-cozida, um ponto de vista empacotado: vamos por aqui, é assim, a cidade comporta-se desse modo e não daquele, o fortalezense é estanque, os hábitos estacionaram nos anos 80, é o que vemos repetir-se toda hora, vindo de bocas as mais diversas, cheias dessa certeza que iguala sociologia a alquimia, ciência a carteado, análise e boliche. 

Até que uma hora a gente sai um pouco do próprio corpo e, do alto, montado numa grua imaginária que não é outra coisa senão nossa vergonha, vendo a cena desenrolar-se, se assusta com a semelhança entre a discussão e uma mesa-redonda sobre futebol. E todo mundo sabe que as mesas-redondas de futebol são regidas por leis inapreensíveis.

Os temas são muitos: o viralatismo, por exemplo, ou a suposta falta de amor à cidade, ou o alto índice de violência, ou a incivilidade das elites, ou a cultura umbiguista das classes médias, ou a burrice dos gestores, o desapreço à memória, o nomadismo despolitizado da arte e todo um  rosário de lamentações que a gente recebe de berço; espólio que ninguém pede, herança que vem a contragosto e com a qual, de uma maneira ou de outra, nos acostumamos. Agora é parte da nossa paisagem. Compõe nosso filtro. 

Nenhum desses problemas é falso, mentiroso, mas nem tudo é verdade suprema nem deve servir de baliza onipresente para o raciocínio, a produção, o cinema, a arte, o sexo, as conversas de bar, os relacionamentos, as festas. É preciso não ser tanto Marilena Chauí no dia a dia. É preciso dar um passinho do volante, ir pro lado, gingar pra outro, sair do trilho, escorregar, rir do vexame. Parece que, da noite pro dia, tudo se resumiu a essa grande aldeia cujos movimentos limitam-se a um pra trás e pra frente, jamais pros lados, nunca na diagonal, exceto quando a gente toma um susto.

E a cidade, essa que a gente não vê ou finge não ver a fim de simplificar a vida e garantir um objeto domesticado que caiba perfeitamente nas teorias de cabeceira/manifestos apaixonados - essa cidade, como um pião maluco animado pelo Silvio Santos, gira em todas as direções

Entrar numa discussão atualmente é como comprar ingresso para brincar numa máquina do tempo regulada apenas para o passado, quando – vou chutar agora, um chute talvez desastrado – havia quatro ou cinco preconceitos e todo mundo se dava por satisfeito quanto à inviabilidade deste lugar. Fortaleza era cidade-berço, cidade-creche, cidade-dormitório, cidade-passageira, cidade-terminal, cidade-mezanino, cidade-esquecida, cidade-sala de espera, cidade-desmiolada e por aí vai.  

Fato é que a espera pode ser longa, o terminal de embarque não precisa ser tão feio ou opressivo e essa passagem (estágio entre um antes e um depois, entre um aqui melancólico e um acolá resplandecente, entre o calabouço e o Eldorado), enquanto não vem, enquanto a gente não decide se quer ficar ou ir embora, se arruma as malas ou se se estabelece, se adota hábitos e sotaques precocemente ou se aceita essa boneca de camelô que recebemos de presente no berço – enquanto isso não acontece, vale a pena incrementar a brincadeira e mudar a lente dos óculos.

Reparem que amar ou desamar, isso ninguém escolhe. O que está ao alcance do arbítrio, e, portanto, da vontade, embora tenha menor apelo, é igualmente importante: construir os vínculos e preservá-los. 

Tô falando de, bem aqui, inventar um território de reencantamento.  

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