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Joaquim Fênix Barbosa audita a alma nacional




O negócio do Joaquim Barbosa é, ao contrário do de Frota, auditar a alma nacional, identificando nela os pontos já necrosados (muitos) e os que ainda parecem ter conserto (muito poucos), e, a par desse raio-x obtido após uma varredura fina, feita a contrapelo, uma varredura sem a qual seria humanamente impossível descobrir nossas mazelas, um processo que se complexifica à medida que avança, uma profunda investigação das instituições e dos homens que as tornam possíveis, prescrever unguentos e beberagens a fim de colocar nos eixos a brasilidade. 

Joaquim Fênix Barbosa é, conceitualmente, a reunião, num só corpo, de Saruman e Gandalf, da magia negra (sem preconceito) e da branca, do desinteresse e da paixão. É, por essas razões, um arauto da dubiedade, gene dominante do confiar desconfiando, antropólogo antropofágico. 

Joaquim incumbiu-se da tarefa nada fácil de higienizar a morada nativa, esfoliar o congresso, drenar impurezas dos hábitos cotidianos, espargir água de colônia nos desvãos bolorentos da cultura política e econômica, cauterizar esquemas, espremer mal-feitos e garantir, desse modo, o desenvolvimento a taxas regulares e juros honestos de um país grandioso, livre da acne e das manchas provocadas pela continuada exposição aos raios solares. Um país de rosto limpo, sem medo ou vergonha do bigode chinês.  

Joaquim é, não sem razão, resultado dessa hipotética fusão entre o padre Fábio de Melo e uma vendedora da Avon que, inconformada com a insignificância do papel que lhe cabe, ou seja, o de negociar preços e marcas de produtos cosméticos, decidisse ela mesma escolher os perfumes, tratamentos de pele e técnicas de hidratação da camada epidérmica, vincada depois de muito desgaste e exposição às toxinas do dia a dia.

Ultrapassando a barreira do meramente paliativo, da solução solúvel em água,  preocupado com o interior (padre Fábio) e o exterior (vendedora), com a pele e o espírito, esse híbrido parte para a transformação verdadeira do ser – uma mutação que dispensa o Kaiak e o single ladies vocalizado em nome da Santa Sé.  

O que se seguirá ao trabalho secular/missionário de Joaquim Fênix Barbosa, eis uma pergunta para a qual ainda não temos um esboço sequer de resposta. 

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