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O boato como elemento coesivo no contemporâneo



Casal testa limites do boato-arte, forma hipervalorizada de subversão da ordem 


Um conceito que merece estudo rápido, porém não apressado, visto que é categoria-chave, é o do boato, a fala que se perde entre mil e um atores, cujo início se desconhece e cujo fim nunca se vislumbra; a enunciação partilhada febrilmente e de teor ora assustador, ora concupiscente, segredada de orelha a orelha, boca a boca, como um dos arcanos de Fátima; password moderno que tem a propriedade de tornar o mensageiro, ainda que involuntário, e a audiência, ainda que inconsciente, membros venerandos dessa esquisita confraria de seres arregimentados mais com base no aleatório e no randômico do que no estatística e algoritmamente seguro. 

Essa confraria atende pelo nome óbvio de Boataria. 

O boato é a língua da modernidade, da pós, da pré e da vindoura, aquela que sequer se anunciou, a seiva bruta que alimenta os ramos mais distantes da árvore frondosa, os galhos incapazes de, por força própria, alcançarem a fertilidade terrosa de onde provêm as substâncias calóricas necessárias à vida. 

O boato é o cereal do circuito-enxaqueca, o Red Bull dos enturmados.   

O boato também é democrático, servil e, talvez por isso, comunica a uma quantidade impressionante de pessoas. O boato é o signo atual, a legenda para um tempo em que a televisão e a internet, a pretexto de tornar mais límpida a superfície do diálogo entre os diferentes, só fizeram crescer o palavrório, a cantoria enganosa, a peroração, a pseudo-erudição, a reza fake, potencializando a ambiência na qual essa mensagem inflamada se presentifica como fundamento.

O boato justifica a volatilidade como norma, contaminando, por intermédio de uma correia de transmissão invisível, mas eficientíssima, as relações. Volátil o boato, a língua-mestra dos indivíduos, volátil também a maneira como esses indivíduos estabelecem-se enquanto aldeia, volátil o vínculo, volátil a empatia, a habilidade de se tornar momentaneamente o outro.

Volatilizados, os elos da cadeia histérica tratam de espalhar ainda mais boatos, crendo-se, por incrível que possa parecer, artistas, políticos, gestores etc. Quanto mais volatilizados e traiçoeiros, menos acreditam-se próximos do mundo real (o artístico habitando esse residencial cinco estrelas inacessível ao vulgo).    

O poder do boato, a boataria, a mansidão com que logo se converte em verdade uma mentira ou ao menos uma verdade parcial – a mágica transubstanciação segue um processo alquímico cujas etapas, passado tanto tempo de desenvolvimento científico, ainda desconhecemos.

Como tem início o boato, como termina? Que fatores incidem em sua formação? O que determina o sucesso e o fracasso de um boato? Os atores envolvidos na cadeia? A natureza da mensagem a ser “boatizada”? O humor do “boatante” (aquele que pratica a boataria) em contraste com o do “boatado” (aquele que sofre o boato)?

Boato-piada, boato-chiste, boato-verdade, boato-mito, boato-paródia, boato-experimento, boato-arte, boato-boato, boato-moleque: são tantas as modalidades e tão alegremente cultivadas que quem quer que se dedique a sua análise terá diante de si não um sorriso de Mona Lisa, mas trinta ou cinqüenta, uma fileira deles dispostos lado a lado, arreganhados em careta, compondo uma sinfonia sumamente enigmática, quando não desesperadora.

Tal é a natureza do boato: instalar-se como verdade mais verdadeira, como conceito que dispensa quaisquer considerações. É o que é; basta-se, farta-se, e com ele fartam-se aqueles que se resignam à boataria, decididos a se satisfazer plenamente com o que não é pleno.

A plenitude está fora da ordem do boato? Nem sempre. Há boatos genuínos, anunciações da verdade. Mas são a minoria.

Por que tanto apreço teórico ao boato? O que há nele de tão especial que nos possa engrandecer? Havendo, é possível tirar proveito de uma atividade tão controversa? Ou o mero entendimento de seus mecanismos é elemento garantidor da paz social?

Nesse último fim de semana, tivemos uma mostra razoável da substância reimosa que é o boato, quando levas de famílias despossuídas acorreram às agências bancárias a fim de retirar da conta o punhadinho de dinheiro que o governo distribui como forma de atenuar a miséria do país. Reféns do boato, largaram-se numa noite de sábado, alguns flagrantemente desarrumados, como se tivessem deixado a casa e o resto pra trás. 

Eram a imagem do aperreio, uma trupe de artistas da vida real, rebanho intervencionista à espera de um Zé Celso que jamais chegaria.   

Nisto resulta a força do boato: cria efeito de manada, distorce, deforma, antecipa juízos e abastece a fome de alguma tirania muito íntima que se aloja em nós como um carocinho de siriguela.

E quem não gosta de siriguela? 

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