Infelizmente, o último patriarca da escola não-irônica, instituição cujo programa de estudos dedicava-se somente às manifestações sinceras, não está mais aqui pra responder a pergunta
Embora corra sério risco de me ver
precocemente rotulado como um diluidor vulgar, incapaz sequer de disfarçar o
modismo que decidiu abraçar, espécie moralmente indefensável num mundo em que a
originalidade é norma de conduta suprema, confesso meu pecado de antemão: não
resisti ao charme do assunto. Resolvi falar de ironia – é possível eliminá-la ou
estamos realmente fadados ao enfado que se traveste de esperteza e embota a
visada do outro como uma unidade viva tão especial e única no mundo quanto nós
mesmos?
Se esse não é o tema da moda, chega bem
perto. Digamos que uma parcela considerável da inteligência discute agora
formas de superação não apenas do discurso irônico, mas da cultura irônica, da
qual as brilhantes analogias e charadas pop
que pululam nas redes sociais como bólidos celestiais liberados por estrelinhas
superaquecidas são apenas a ponta infinitesimal do iceberg.
A pergunta – há vida inteligente fora do escopo
irônico? – deriva de uma surpresa. Uma quantidade razoável de artigos recentes trata
da ironia (eis a surpresa): de sua natureza essencialmente nociva; do quanto
está presente em nossas vidas; de como não conseguimos largá-la um segundo; de como
se transformou em subterfúgio, preenchendo tudo com um visco resistente ao removedor
mais eficiente; de como se associa à apatia e à autodefesa, atacando
antecipadamente e se defendendo preventivamente; de como adota a iconoclastia com relativa naturalidade, mas,
se é para construir algo no lugar dessa coisa que a ironia abomina, aí são
outros quinhentos.
Dizem (1): a ironia produz um tipo de
comportamento frouxo, constituindo-se numa cilada conceitual que, se ainda goza
de algum prestígio, é exatamente porque insistimos em encarar a fragilidade
desse filtro tosco de percepção da realidade com muita complacência.
Dizem (2): a ironia é subproduto de uma
temporalidade tacanha – evito a todo custo essa palavra, que julgo sempre mais
grosseira do que é, mas aí está ela, tacanha, e quem sabe finalmente o vocábulo
tenha encontrado o momento oportuno para dar o seu recado.
Dizem (3): a ironia reprogramou nossos
cérebros, nosso pedaço mais sensível às mudanças. Neste instante, por exemplo, essa
gelatina esbranquiçada recebe cada alteração no entorno como uma pequena
epifania evolutiva, adaptando-se como pode aos tempos, um pouco desconfiado, é
verdade, mas indo em frente assim mesmo. É o timão e o timoneiro de um barco
maluco navegando sem astrolábio nem GPS – tampouco tripulação. É apenas a gente
e ele.
Dizem (4): já não há retorno possível a esquemas
mentais pré-internet, pré-bricolagem vertiginosa, pré-multiplicidade de usos,
pré-diluição etc. A ironia alojou-se na comida, nas roupas, na dança, na
comunicação, no cinema, na conversa, na troca de mensagens, no debate público,
no beijo, no coito, nas festas, na reunião de família, na empresa, na bebida,
na ciência, na literatura. Está no garçom e na criança sorridente, no servente
de pedreiro e no professor de matemática, no cineasta e no estudante, na
réplica e na tréplica.
Dizem (5): no seu cantinho, a ironia faz o
que tem de fazer, ou seja, cria ruídos e opacidade, interrompe conversas,
dificulta o diálogo, interpõe barreiras, demole rampas de acesso ao
entendimento, borra a imagem do outro, agindo como um líquido que tem a
estranha propriedade de promover ainda mais fricção entre duas superfícies que
se tocam – quando se tocam.