Pular para o conteúdo principal

Postagens

Aviões de passagem emitem sinais de passageiros

Aviões de guerra agora cortam o céu da cidade. Não fazem manobras, apenas seguem em linha reta, transportam pessoas cujo silêncio contrasta com o amontoado vertiginoso de nuvens brancas movimentando-se rumo a outras regiões do globo, então os aviões desconhecem o destino dessas pessoas, as nuvens desconhecem o destino dessas pessoas, talvez mesmo o operador de voos responsável por digitar no grande computador central as referências necessárias para que as aeronaves não se percam, talvez ele desconheça igualmente para onde se encaminham os engenhos e as nuvens formosas que, sem motor ou outro mecanismo de propulsão poluente ou ecológico, deslocam-se com velocidade, o dia inteiro, sem fazer pausas nem paradas, sem embarques ou desembarques, apenas um condomínio contínuo e monótono de nuvens alvas trasladando formas sem nome, um bloco compacto de gases em conformidade com sua natureza física, química e biológica, resignado ante a inevitabilidade do inevitável (a redundância é uma figura d...

Diário de campo em 3ª pessoa

Não havia tanto tempo, pensando bem não havia nenhum tempo, era o que costumava alegar se lhe pediam qualquer trabalho uma semana antes de findo o prazo de entrega, mas todos sabiam que se tratava de desculpa, uma entre tantas que ainda faria desfilar diante das cobranças já nervosas, já exasperantes para ambas as partes envolvidas naquilo, era sobretudo solicitado, pedido, cobrado, embora sempre recusasse acreditar que estivessem certos, era mais a falta de tempo, era o prazo curto, era a natureza do trabalho, eram principalmente a natureza e a ordem internas do trabalho, fosse ele qual fosse, viesse de onde viesse. Vejam aquele, observar durante horas o nascimento, o desenvolvimento, a reprodução e, finalmente, a morte rastejante de uma célula queratinosa disposta na ponta da antena de uma libélula e, sem descurar da habilidade narrativa e perspicácia científica, bem lembrado, produzir um completo relatório, atinando igualmente para as partes mais importantes do processo, a saber, ...

Alteridade psicomotora disfuncional

Tratou de entender por que diabos sentia-se especial dominando aquele conjunto em tudo semelhante a outros conjuntos, e o fato é que chegou a uma resposta: era diferente não porque fosse diferente mas porque construíra aquela ideia, assim repousava em si a noção de que qualitativamente era o mesmo, exceto o conceito, que lhe garantia áurea distintiva, e nisso não havia qualquer novidade. Bobagem, pensou. O que me torna especial? Nada. Possuo um mecanismo, uma ferramenta pra ser preciso, que embora outras pessoas também possuam e não sejam de fato raras as pessoas que possuem essa ferramenta, chegando a ser bastantes numa fila de caixa de supermercado, o ato de obtê-la faz de mim alguém cujo propósito na vida pode ser visto também como o de me diferenciar segundo padrões rasteiros, comuns. Tais quais o são a posse de a) objetos e das b) sensações que esses objetos provocam. Tenho uma caneta, essa caneta risca como outra qualquer e, se existe nela um traço incomum é porque essa caneta ...

Milagretes

E quando não se sabe o que fazer? E nem aonde ir? É habitual perder-se e reencontrar-se várias vezes ao dia, diria até que é possível dar de cara com um tipo assim que encontre validade em ver repetir-se o mesmo arsenal de imposturas a vida inteira, sequer parando para considerar que, bom, talvez fosse hora de colocar um ponto final nessas coisas e, com alguma sorte, encerrar um ciclo e começar outro. Qual o quê. Não é bem assim que a banda toca, diz minha mãe, e continua, de modo geral sofremos ao tentar colocar as coisas nos seus devidos lugares. As coisas insistem em ocupar latitudes inusitadas, as coisas preferem estar onde não podem estar, as coisas seguem desejando não serem o que são: coisas, e saem por aí operando milagretes, transgredindo muretas e saltando pequenos obstáculos, mas, olhem bem e reparem com honestidade, não há nada que não possamos controlar. Não há nada que não possamos controlar. Disse isso sem se preocupar com a ideia que fazia da exatidão, disse satis...

Trecho

Talvez não esperasse, e de fato não esperava, a vida sempre uma sucessão de vocábulos assumidamente condicionais, uma enervante sequência de dezenas não premiadas, um nome cujo começo, meio e fim não se confundiam o com seu. Mas, se querem saber, estava tudo bem, acordava contente porque tinha essa brisa passando pela janela e ainda que as roupas sujas formassem uma espécie de Estrela da Morte privé inexpugnável estacionada meio que por milagre a dez centímetros do próprio rosto, imaginava cedo ou tarde teria forças para dar vencimento a tanto traste.

Dia de cobrança

Ligou a televisão, desligou, era natural que sentisse a mudança, não a grande mudança que vinha esperando, mas a pequena, a que passara sem ser vista nos últimos tempos, e por últimos tempos entendia um recorte que, honestamente, reconhecia-se incapaz de definir, de modo que celebrou estar ciente da impossibilidade de, primeiro, distinguir grandes de pequenas mudanças, e, segundo, saber exatamente em que instante deram-se as pequenas e não as grandes mudanças, se é que se haviam dado aquelas e não estas. Estava nesse espírito catalogador e reflexivo quando a panela informou da fervura da água destinada ao café, então pôs-se a preparar a bebida, tomou goles enquanto caminhava no corredor, fumou em seguida, olhou as formações de nuvens dispostas em fantasia no céu azul da cidade, durante curta passagem por São Paulo alimentou, pulara de um pensamento a outro em segundos, saudade deliberada da cor do céu, não de qualquer outro símbolo da metrópole litorânea, nem do mar, evidenciado azul...

23H23

Então era assim que se sentia embora preferisse esconder, esconder era seu litígio particular, uma causa pela qual vinha lutando nos últimos anos, o batente contra o qual se projetava com força capaz de fazê-lo despedaçar-se não fosse ele um homem de a) coragem, b) amor e c) medo nas mesmas proporções. Então era assim que as coisas se davam no mundo, pensou, não exatamente lastimando que o presente houvesse ganho contornos indesejáveis, mas, de alguma maneira, prevendo, cedo ou tarde os destinos assumiriam aquelas cores e se se surpreendia era menos por ser fantástico. Era por ser óbvio. Quem sabe porque aguardasse desfecho semelhante ao que assistia de camarote. A vida passando como as vacas que desfilam nas ruas da cidade fantástica, enquanto ele, um homem jovem, não bonito, era como se olhasse sempre a mesma pintura, sem entusiasmo ou medo excessivos. Era disso, evitava transbordos. Recorda-se agora do dia em que subiu no muro da casa do amigo e viu a tia do amigo sentada no...