Pular para o conteúdo principal

Diário de campo em 3ª pessoa


Não havia tanto tempo, pensando bem não havia nenhum tempo, era o que costumava alegar se lhe pediam qualquer trabalho uma semana antes de findo o prazo de entrega, mas todos sabiam que se tratava de desculpa, uma entre tantas que ainda faria desfilar diante das cobranças já nervosas, já exasperantes para ambas as partes envolvidas naquilo, era sobretudo solicitado, pedido, cobrado, embora sempre recusasse acreditar que estivessem certos, era mais a falta de tempo, era o prazo curto, era a natureza do trabalho, eram principalmente a natureza e a ordem internas do trabalho, fosse ele qual fosse, viesse de onde viesse.

Vejam aquele, observar durante horas o nascimento, o desenvolvimento, a reprodução e, finalmente, a morte rastejante de uma célula queratinosa disposta na ponta da antena de uma libélula e, sem descurar da habilidade narrativa e perspicácia científica, bem lembrado, produzir um completo relatório, atinando igualmente para as partes mais importantes do processo, a saber, nascimento, desenvolvimento e morte.

Tendo isso em mente, fora a campo caçar libélulas, visto que sem elas o trabalho seria mortalmente incompleto, e como houvesse aprisionado quantidade razoável de libélulas nos bolsos, no estômago e no chapéu, sem esquecer de jogá-las em largas porções no coração e nos ouvidos e também no ânus, não sabia com exatidão a partir de qual ponto da pesquisa seguiria em frente, que espécime escolher? Havia tantas delas que por acaso confundia-se se lhe exigissem atenção, por favor, olhasse na direção exata de quem de direito.

Quem era quem de direito? Nunca soube ao certo. De maneira que regressava a campo ao menos três vezes ao dia para capturar mais e mais desses pequenos animais, como costumava chamá-los, pequenos animais, sem jamais concluir a pesquisa encomendada e mesmo conseguir recordar o começo de tudo, o pedido que motivara a busca, disso sequer havendo o menor vestígio. Estava tudo inexplicavelmente destinado ao esquecimento. Ele remotamente preocupava-se.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...