Pular para o conteúdo principal

23H23


Então era assim que se sentia embora preferisse esconder, esconder era seu litígio particular, uma causa pela qual vinha lutando nos últimos anos, o batente contra o qual se projetava com força capaz de fazê-lo despedaçar-se não fosse ele um homem de a) coragem, b) amor e c) medo nas mesmas proporções.

Então era assim que as coisas se davam no mundo, pensou, não exatamente lastimando que o presente houvesse ganho contornos indesejáveis, mas, de alguma maneira, prevendo, cedo ou tarde os destinos assumiriam aquelas cores e se se surpreendia era menos por ser fantástico.

Era por ser óbvio.

Quem sabe porque aguardasse desfecho semelhante ao que assistia de camarote. A vida passando como as vacas que desfilam nas ruas da cidade fantástica, enquanto ele, um homem jovem, não bonito, era como se olhasse sempre a mesma pintura, sem entusiasmo ou medo excessivos. Era disso, evitava transbordos.

Recorda-se agora do dia em que subiu no muro da casa do amigo e viu a tia do amigo sentada no sofá da sala e, a seu lado, uma amiga da tia do amigo, e elas, tia e amiga, ambas mulheres, beijavam-se com força e sem parar.

A essa altura, investiga com relativa seriedade o que de fato acontece quando o tempo passa, ou durante o passamento do tempo, ou enquanto a ação se desenrola à proporção das horas. Seja como for, é disso que trata. O que tinha para contar era uma história em que não fossem conhecidos heróis todavia uma parcela razoável de pessoas não enxergasse nessa ausência mau presságio mas um motivo para se sentir segura. E, estando nesse conforto mental que os casais são pródigos em cultivar, o restante de nós alcançasse facilmente o sossego e depois a paz necessária ao cumprimento das atividades de rotina, amar, chorar, desesperar, que se seguem a amar novamente, procriar, matar-se lentamente.

Ficou pensando nessa bobagem de heróis por muito tempo ainda, não chegando a qualquer resposta, exceto que pretendia comunicar algo diferente do que acabara dizendo à plateia que o assistia sentada, bebendo e comendo e apenas eventualmente encontrando no que falava alguma fatia de excepcionalidade. Então considerou que jamais havia imaginado um dia tornar-se excepcional, com o que neste momento se deparava, sem surpresas.

Então era assim que os dias terminavam, repletos dessa capacidade de serem reticentes quanto ao que planejavam logo às primeiras horas, ora plenos de potência, ora percorridos por total falta de intenção. Imaginem que, no caminho entre a cama e a geladeira, enquanto o locutor narra o que estiver ocorrendo na tela da televisão, a fome passasse mas retornasse no instante seguinte, e assim a noite inteira, um efeito esquisito que nos fizesse entender precisamente: o que está aqui, agora, pode não estar depois ou, estando, não ter qualquer motivo para estar, e vice-versa.

E foi dormir com esse jogo idiota de pensamentos na cabeça, uma metafísica rudimentar que envergonharia o professor de filosofia da 7ª série.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d