
Então era assim que se sentia embora preferisse esconder, esconder era seu litígio particular, uma causa pela qual vinha lutando nos últimos anos, o batente contra o qual se projetava com força capaz de fazê-lo despedaçar-se não fosse ele um homem de a) coragem, b) amor e c) medo nas mesmas proporções.
Então era assim que as coisas se davam no mundo, pensou, não exatamente lastimando que o presente houvesse ganho contornos indesejáveis, mas, de alguma maneira, prevendo, cedo ou tarde os destinos assumiriam aquelas cores e se se surpreendia era menos por ser fantástico.
Era por ser óbvio.
Quem sabe porque aguardasse desfecho semelhante ao que assistia de camarote. A vida passando como as vacas que desfilam nas ruas da cidade fantástica, enquanto ele, um homem jovem, não bonito, era como se olhasse sempre a mesma pintura, sem entusiasmo ou medo excessivos. Era disso, evitava transbordos.
Recorda-se agora do dia em que subiu no muro da casa do amigo e viu a tia do amigo sentada no sofá da sala e, a seu lado, uma amiga da tia do amigo, e elas, tia e amiga, ambas mulheres, beijavam-se com força e sem parar.
A essa altura, investiga com relativa seriedade o que de fato acontece quando o tempo passa, ou durante o passamento do tempo, ou enquanto a ação se desenrola à proporção das horas. Seja como for, é disso que trata. O que tinha para contar era uma história em que não fossem conhecidos heróis todavia uma parcela razoável de pessoas não enxergasse nessa ausência mau presságio mas um motivo para se sentir segura. E, estando nesse conforto mental que os casais são pródigos em cultivar, o restante de nós alcançasse facilmente o sossego e depois a paz necessária ao cumprimento das atividades de rotina, amar, chorar, desesperar, que se seguem a amar novamente, procriar, matar-se lentamente.
Ficou pensando nessa bobagem de heróis por muito tempo ainda, não chegando a qualquer resposta, exceto que pretendia comunicar algo diferente do que acabara dizendo à plateia que o assistia sentada, bebendo e comendo e apenas eventualmente encontrando no que falava alguma fatia de excepcionalidade. Então considerou que jamais havia imaginado um dia tornar-se excepcional, com o que neste momento se deparava, sem surpresas.
Então era assim que os dias terminavam, repletos dessa capacidade de serem reticentes quanto ao que planejavam logo às primeiras horas, ora plenos de potência, ora percorridos por total falta de intenção. Imaginem que, no caminho entre a cama e a geladeira, enquanto o locutor narra o que estiver ocorrendo na tela da televisão, a fome passasse mas retornasse no instante seguinte, e assim a noite inteira, um efeito esquisito que nos fizesse entender precisamente: o que está aqui, agora, pode não estar depois ou, estando, não ter qualquer motivo para estar, e vice-versa.
E foi dormir com esse jogo idiota de pensamentos na cabeça, uma metafísica rudimentar que envergonharia o professor de filosofia da 7ª série.
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