Pular para o conteúdo principal

Milagretes


E quando não se sabe o que fazer? E nem aonde ir? É habitual perder-se e reencontrar-se várias vezes ao dia, diria até que é possível dar de cara com um tipo assim que encontre validade em ver repetir-se o mesmo arsenal de imposturas a vida inteira, sequer parando para considerar que, bom, talvez fosse hora de colocar um ponto final nessas coisas e, com alguma sorte, encerrar um ciclo e começar outro. Qual o quê. Não é bem assim que a banda toca, diz minha mãe, e continua, de modo geral sofremos ao tentar colocar as coisas nos seus devidos lugares.

As coisas insistem em ocupar latitudes inusitadas, as coisas preferem estar onde não podem estar, as coisas seguem desejando não serem o que são: coisas, e saem por aí operando milagretes, transgredindo muretas e saltando pequenos obstáculos, mas, olhem bem e reparem com honestidade, não há nada que não possamos controlar.

Não há nada que não possamos controlar.

Disse isso sem se preocupar com a ideia que fazia da exatidão, disse satisfazendo-se amplamente com a ideia que tinha da ideia. Entropia, pra ser sincero. Sistemas que se consomem, energias que se dissipam sem que se mova um só músculo, pelo menos assim acontece, ao correr do dia pensou que talvez fosse realmente preciso terceirizar parte do comando das coisas a que vulgarmente atribuía vida, dito de outra maneira, era importante não assumir sozinho a responsabilidade por tudo, pretendia atrelar decisões a outras decisões cuja origem e motivo partiam antes de outras de pessoas que dele mesmo.

Um emprego, um doutorado, filhos, família, uma casa na serra, até os livros, até o controle mediante religião ou qualquer outra coisa, o controle de si. Tudo era essa espécie de exterioridade com a qual contamos, na verdade a qual apelamos para que nosso barquinho furado afunde menos velozmente.

Hoje meu barquinho afundou bem pouco, mas ontem, bem, ontem as coisas degringolaram.

Esperava entender o que estivesse escrito no caderno quando se passassem uma semana, um mês, um ano. Não sabia se podia, mas tentaria. Sim, tentaria.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...