Pular para o conteúdo principal

Dia de cobrança


Ligou a televisão, desligou, era natural que sentisse a mudança, não a grande mudança que vinha esperando, mas a pequena, a que passara sem ser vista nos últimos tempos, e por últimos tempos entendia um recorte que, honestamente, reconhecia-se incapaz de definir, de modo que celebrou estar ciente da impossibilidade de, primeiro, distinguir grandes de pequenas mudanças, e, segundo, saber exatamente em que instante deram-se as pequenas e não as grandes mudanças, se é que se haviam dado aquelas e não estas.

Estava nesse espírito catalogador e reflexivo quando a panela informou da fervura da água destinada ao café, então pôs-se a preparar a bebida, tomou goles enquanto caminhava no corredor, fumou em seguida, olhou as formações de nuvens dispostas em fantasia no céu azul da cidade, durante curta passagem por São Paulo alimentou, pulara de um pensamento a outro em segundos, saudade deliberada da cor do céu, não de qualquer outro símbolo da metrópole litorânea, nem do mar, evidenciado azul, mas somente do céu.

Num dia assim de nuvens brancas gigantescas percorreu ruas e avenidas com o pai, bateram de porta em porta, inquiriram homens e mulheres, quitassem as prestações atrasadas de espelhos, cadeiras de balanço, tecidos, armários, mesas de cozinha, toalhas, uma série de produtos voltados exclusivamente para o lar. Pai e filho sabiam tratar-se de algo importante, era a partir do dinheiro arrecadado que poderiam ir ao cinema, como poderiam não ir, sempre engodados nas possibilidades, e era cercado por essa aflição que estava, acompanhando cada passo do pai debaixo do sol da tarde, estudando de maneira distraída o bolo ensebado de cartelas de cobrança presas com liga, nelas cada nome anotado na letra derreada daquele homem, uma letra que aprendera a chamar de a letra mais enigmática que conhecia, orgulho de vê-la estampada na agenda, a dos pais dos outros meninos signos tortuosos, destituídos de beleza.

A do pai dele era diferente, sempre soube.

Estreava Batman no cinema da cidade de céu azul, o menino tinha insistido em ver, e o pai, ao menos até ali, havia entendido que os dois precisavam ir ao cinema. Foi o que fizeram. Mais tarde ganharia a camisa com o símbolo do herói, um morcego.

Ligou novamente a televisão, Obama discursava, depois o premiê de Israel, congressistas aplaudiam a um e outro com entusiasmo, não que fosse preciso registrar com acurada percepção o que apenas produzia alterações diminutas nas camadas mais frágeis, disse isso a si mesmo e convenceu-se de imediato da necessidade de parar com todas essas coisas, e por essas coisas entendia uma série interminável de fatos, dos mais irrelevantes aos incontornáveis. Vendo-se em retrospecto, alimentava a pretensão de abarcar grandes e também pequenos eventos, e não conseguia por força não de sua imperícia.

Lembrou-se de que tudo tem profunda relação com a fumaça corpulenta e autônoma que se desprendia agora da boca de um vulcão sem lava, sem fogo, sem mortos, apenas a densidade cinza daquele sopro antigo ocupando ruas de cidades distantes três mundos do mundo do menino.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d