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Alteridade psicomotora disfuncional


Tratou de entender por que diabos sentia-se especial dominando aquele conjunto em tudo semelhante a outros conjuntos, e o fato é que chegou a uma resposta: era diferente não porque fosse diferente mas porque construíra aquela ideia, assim repousava em si a noção de que qualitativamente era o mesmo, exceto o conceito, que lhe garantia áurea distintiva, e nisso não havia qualquer novidade.

Bobagem, pensou. O que me torna especial? Nada. Possuo um mecanismo, uma ferramenta pra ser preciso, que embora outras pessoas também possuam e não sejam de fato raras as pessoas que possuem essa ferramenta, chegando a ser bastantes numa fila de caixa de supermercado, o ato de obtê-la faz de mim alguém cujo propósito na vida pode ser visto também como o de me diferenciar segundo padrões rasteiros, comuns.

Tais quais o são a posse de a) objetos e das b) sensações que esses objetos provocam.

Tenho uma caneta, essa caneta risca como outra qualquer e, se existe nela um traço incomum é porque essa caneta está integrada a um conjunto de símbolos que, no processo judicativo social, vale mais que a tinta azul turquesa e a ponta porosa da caneta, bem entendido?

Afunilando mais ainda e buscando ser límpido, chegamos ao paradigma da bicicleta, que, a despeito do funcionamento especificamente repetitivo desse mecanismo (afinal qualquer bicicleta opera de acordo com o mesmo princípio, uma corrente, duas rodas ou somente uma, equilíbrio, força muscular ou mecânica que gera movimento etc.), converte-se ela mesma em uma nebulosa de coisas diferentes, distribuídas entre pessoas iguais que, ato contínuo, tornam-se alquimicamente diferentes, dando-se o processo de tal maneira que um agente comum revestido de capa valorativa de peso concede a quem o detenha um status impensável.

Isso vale para as pequenas e também para as grandes normatividades.

Queria desde o começo refletir sobre isso, admito haver falhado na tentativa de tornar o discurso uma peça límpida, objetiva, todavia reconheço a dificuldade em abordar frontalmente esse tema, de modo que talvez obtivesse melhores resultados enfrentando-o pelas costas ou ainda pelas laterais, fingindo desconhecimento ou desinteresse, o que fosse.

Quem sabe na próxima consiga entender por que diabos alguém que acabou de comprar um computador novo sente-se inexplicavelmente superior ao porteiro do meu prédio.

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