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Rebuscada

Mas, claro: é possível que não compreenda inteiramente o que se passa entre nós. É possível não compreender plenamente um ao outro. É igualmente possível que, após tantos anos, nos pareçamos tão mutuamente estranhos quanto fomos no começo, quando, ali, parados na autorizada, checando eu a placa mãe do notebook e você o HD do PC da sua irmã, cada qual enredado em coisas particulares, histórias que teriam se desenrolado absolutamente paralelas, nos olhamos e decidimos em silêncio que seria. Não estou falando do acaso, da beleza das coisas arbitrárias. Estupidez, isso. Foi, não nego. Não nego que o tempo primaveril (a Marcinha iria adorar escutar isso) realmente pareceu eterno, as longas conversas, fantástico, os infinitos silêncios, enfim, todo esse começo repleto de belas imagens para guardar e de histórias que são ao cabo mera reprodução de uma via-crúcis atravessada indistintamente por qualquer pessoa que resolva amar. É natural, vejo assim, nada especial, friamente analisado... E...

Minha geração

Não entende que haja essa suspensão do prazer, que o produto adquirido em compra coletiva não corresponda exatamente ao que dizia a descrição, que o dia ansiado seja ora especial, ora a mesma maratona de apanhar tudo pelas mãos quase sempre suadas que deixam os objetos, xícaras, cadernos, livros e dedos, escorregarem, então o tempo vira um continumm zinho desgostoso recheado de pequenas decepções, como encontrar o homem certo mas o homem certo quase no mesmo segundo torna-se figurativamente desinteressante, ou mesmo indiferente. E também não entende essa absurda escassez de sentido em algo que, na sua cabeça, está plenamente desenhado, acordar, ir ao salão, à faculdade, à praia, ao shopping, namorar, falar ao telefone, checar e-mail, fazer sexo, e ao final do dia, a despeito do acúmulo de atividades escolhidas prioritariamente entre tantas que não resultariam em retorno emocional e afetivo à altura, como adora destacar, sente: é como se estivesse meio lá, meio cá, e fala isso tudo pont...

A senhora poderia explicar a letra?

Doutora, é mais ou menos como se não doesse, é quase dor, fica muito perto, imagino que sentem na mesma fileira afastados um do outro por duas ou três cadeiras, e com isso quero dizer somente que não chega a ser rigorosamente um incômodo, mas admito, dói um pouco quando, antes de passar na catraca do ônibus ou no instante imediatamente anterior à impressão do extrato bancário, para ficar em apenas duas situações mais corriqueiras, tenho um relâmpago de lembrança, e esse minuto em que tudo estremece é tão chocante que descer na parada seguinte, que é uma coisa bastante simples, ganha contornos mecânicos, robóticos, uma perna, depois outra perna, finalmente a calçada, agora um passo, depois outro passo, me flagro quase ensinando o abecedário dos movimentos. Nessas horas me sinto totalmente arruinada, é algo absurdo, é claro que é, se me entende, se compreende como é ser invadida por pensamentos que não se controlam, vêm e vão, o tipo do pensamento que se evita o dia inteiro fingindo...

Superconsciência do "bang bang"

Havia entre ambos uma sombra, uma nuvem rala de tensão que apenas se insinuava, entretanto se era nuvem e essa nuvem denotava tensão, mas tensão apenas sugerida, não explicitada, o leitor há de querer saber de que maneira ela descobrira o mal estar do casal. Faro de mulher? Quem sabe. Era menos um mal estar do que um leve incômodo. Curiosamente, acometia os dois em simultâneo. De todo modo, o primeiro sinal lhe chegara mesmo pelas narinas, tamanha era a discrepância, não a discrepância, mas a distância que os separava naquele momento. Um em Paraty, outro em Jeri. Entre eles, interpunha-se, para seu governo, um balcão de cozinha americana. Sobre o balcão, um bloco de cimento recoberto de azulejos brancos que media cerca de dois metros por 40 cm de largura, repousavam dois copos grandes. Logo os copos receberiam: um pouco de leite em pó, três colheres de açúcar, achocolatado e água. Detrás do balcão, o Homem preparava o jantar. Sentada no pufe da sala, a Mulher aguardava enquanto as...

Exercício II

As plantas no parapeito da janela demandam alguma atenção, os peixes nem tanto, é certo que se preocupa com eles, menos com o dourado, mais com o lápis, mas não a ponto de interromper o que esteja fazendo para verificar se água e comida estão em conformidade com aquilo que o vendedor da loja de aquários recomendara. Não se permite desvelo além da cota estipulada por si mesmo ainda muito cedo. É sua maneira tímida de ser egoísta. É também uma forma indisfarçada de se distrair dentro de limites bastante definidos. Não porá os pés fora do círculo, não fará nada que o intime a dar saltos, não se arriscará a abandonar o Projeto, ensaiará passos que possa executar com facilidade, dominará cada quadrante do brinquedo e saberá com alguma exatidão quando as contas não fecharem. É sua lei marcial. Mas leis, mesmo as pétreas, são facilmente subvertidas, pensou enquanto retirava uma a uma as folhas secas da planta do jarro menor, precisamente aquela que mais carecia de água, cujo...

Exercício I

Era uma fábula sem animais. A história de um amor, por certo. Uma mulher que amasse um homem e um homem que amasse uma mulher, mas, como elemento complicador, um recurso dramático de que invariavelmente lançam mão escritores, artistas, dramaturgos e cineastas, nem esse homem bem menos essa mulher soubessem de antemão que esse amor lhes seria útil, ou único ou finalmente que esse amor seria amor, posto que o sentimento é por definição resultado de uma vontade inexpressa, e as vontades inexpressas respondem por 87% de qualquer intencionalidade segundo apontam pesquisas na área. A intencionalidade não pode ser confundida com a intenção. São como primas queridas que em outra oportunidade passassem em branco uma à outra. A intencionalidade é a intenção em estado de larva. A intenção é intencionalidade envelhecida. Por exemplo: aplique à palavra “casa” a repetição por infinitos segundos. Logo ela deixará de fazer qualquer sentido. É um exercício de desmaterialização que as crianças e os v...

Fatos da semana

ZUMBIS PODEM PERFEITAMENTE AMAR, DIZEM ESPECIALISTAS Como se não bastassem as vendas do Natal e as guirlandas que chegam enviadas por clientes desejando feliz ano novo antes do tempo, ainda há os zumbis que me aparecem sempre, e quase sempre me assustam quando se fingem de mortos, mas todos sabemos que zumbis são 1) criaturas horrorosas que se arrastam pelas ruas à procura de carne, de sangue, de nada mais que carne e sangue em proporções desiguais, e 2) só sossegam quando conseguem alguma porção de ambos que possa satisfazer-lhes parte da fome, conclusão) assim é a vida, mortos de fome correndo desesperadamente atrás do que comer, entretanto ora a fome é algo que se possa driblar? Obviamente não, mas pode-se perfeitamente domesticar a fome e ensinar a fome que não é hora de comer, o que deve comer e, mais importante, por que deve comer. Mas fome que é fome sequer entende palavras, ela come. CASAL ENCONTRA NOSSA SENHORA, A ESCRITORA PERDIDA Não há nada de anormal comigo, disse pela te...