As plantas no parapeito da janela demandam alguma atenção, os peixes nem tanto, é certo que se preocupa com eles, menos com o dourado, mais com o lápis, mas não a ponto de interromper o que esteja fazendo para verificar se água e comida estão em conformidade com aquilo que o vendedor da loja de aquários recomendara.
Não se permite desvelo além da cota estipulada por si mesmo ainda muito cedo. É sua maneira tímida de ser egoísta. É também uma forma indisfarçada de se distrair dentro de limites bastante definidos. Não porá os pés fora do círculo, não fará nada que o intime a dar saltos, não se arriscará a abandonar o Projeto, ensaiará passos que possa executar com facilidade, dominará cada quadrante do brinquedo e saberá com alguma exatidão quando as contas não fecharem.
É sua lei marcial.
Mas leis, mesmo as pétreas, são facilmente subvertidas, pensou enquanto retirava uma a uma as folhas secas da planta do jarro menor, precisamente aquela que mais carecia de água, cujo caule fino retorcia-se à medida que os dias passavam e seus galhos procuravam desesperadamente a luz, enfiando-se pelas brechas da janela, curvando-se como se cumprimentassem a lavadeira que andarilha no corredor em lentidão.
Leis foram feitas para isso, acrescentaria, mas já sem força, já plenamente convencido de que agia com cinismo ao tratar de padrões como verdade e mentira, certo e errado, raso e profundo, de modo que rapidamente lavou os pés e voltou a assistir ao programa da noite: narrado pela voz de Gandalf, falava da Bíblia do Diabo, um livro robustamente ilustrado escrito por um monge cujo nome cientistas da Suécia tentavam descobrir há algum tempo. Nele, o diabo assemelhava-se a um personagem de desenho animado.
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