Havia entre ambos uma sombra, uma nuvem rala de tensão que apenas se insinuava, entretanto se era nuvem e essa nuvem denotava tensão, mas tensão apenas sugerida, não explicitada, o leitor há de querer saber de que maneira ela descobrira o mal estar do casal. Faro de mulher? Quem sabe. Era menos um mal estar do que um leve incômodo. Curiosamente, acometia os dois em simultâneo. De todo modo, o primeiro sinal lhe chegara mesmo pelas narinas, tamanha era a discrepância, não a discrepância, mas a distância que os separava naquele momento. Um em Paraty, outro em Jeri.
Entre eles, interpunha-se, para seu governo, um balcão de cozinha americana. Sobre o balcão, um bloco de cimento recoberto de azulejos brancos que media cerca de dois metros por 40 cm de largura, repousavam dois copos grandes. Logo os copos receberiam: um pouco de leite em pó, três colheres de açúcar, achocolatado e água. Detrás do balcão, o Homem preparava o jantar. Sentada no pufe da sala, a Mulher aguardava enquanto assistia televisão. Dobrava sem perceber a bainha da calça, depois enrolava uns poucos fios de cabelo. Manias.
Mulher, Homem, sala, dois copos, balcão, TV, caubóis e sacos de dinheiro: eis o cenário, os personagens, o mobiliário, o divertimento. Era noite de sábado de 2001. O tipo do casal que aluga filmes e apenas ocasionalmente sai para tomar café ou dançar. Naquele dia, decidiram pegar westerns na locadora e prolongar a madrugada atirando um contra o outro. Ele começou. Sentada, ela percebeu. Ele tentou disfarçar. Continuou dando tratos ao jantar, mexia o leite, punha mais chocolate, rodava a colher novamente, provava com a ponta da língua, ainda rejeitando a consistência da bebida. Ela flertava com a certeza de que seu Homem fingia concentração, parecia mais vermelho que o normal, a cabeça muito inclinada.
E tinha aquele barulho ecoando na memória recente, um som familiar, mistura engraçada mas constrangedora de rangido e papoco. Buscava definições que pudessem abarcar a sonoridade obliquamente interessante. Só conseguia lembrar-se do estrépito produzido por sapos quando são violentamente espremidos por crianças cuja índole...
Mas não podia ser! Não com ele. Nem com ela, pensou, já totalmente livre das manias e entregue a uma superconsciência responsável pelo desvendamento de um crime – um crime fajuto, todavia crime. Era, não restava dúvida. Com ele, com ela. O primeiro do casal, que comemora aniversário todo dia 28. Ali, enquanto o filme não começava, noite de sábado, 2001. Separados, deram risada. Ela bem mais que ele, o infrator. Para ambos, estava claro: agora, verdadeiramente, eram livres para serem homem e mulher.
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