Doutora, é mais ou menos como se não doesse, é quase dor, fica muito perto, imagino que sentem na mesma fileira afastados um do outro por duas ou três cadeiras, e com isso quero dizer somente que não chega a ser rigorosamente um incômodo, mas admito, dói um pouco quando, antes de passar na catraca do ônibus ou no instante imediatamente anterior à impressão do extrato bancário, para ficar em apenas duas situações mais corriqueiras, tenho um relâmpago de lembrança, e esse minuto em que tudo estremece é tão chocante que descer na parada seguinte, que é uma coisa bastante simples, ganha contornos mecânicos, robóticos, uma perna, depois outra perna, finalmente a calçada, agora um passo, depois outro passo, me flagro quase ensinando o abecedário dos movimentos.
Nessas horas me sinto totalmente arruinada, é algo absurdo, é claro que é, se me entende, se compreende como é ser invadida por pensamentos que não se controlam, vêm e vão, o tipo do pensamento que se evita o dia inteiro fingindo-se adulta, experiente, vivida, arrumando-se tarefas, louça suja, apagar mensagens, cabelo, unhas, livros, sexo, o tipo do pensamento que aninhamos secretamente sob as nossas asas mesmo sabendo que o círculo mais íntimo de amigas reprovaria cada etapa dessa operação alegando unicamente que os prejuízos posteriores não cobririam sequer um terço do prazer, eles que são bons em estatística, então não me pergunte como podem simplesmente chegar a cálculo semelhante, não tenho a menor intenção de entender como fazem isso.
O que me interessa verdadeiramente, doutora, e aqui voltamos à estaca zero, mas de qualquer modo os rodeios ajudam a clarear, sim, o que justifica minha presença aqui: me diga, a senhora sabe, tem a mais vaga ideia de que isso que estou sentindo agora é dor ou apenas estresse por causa da mudança?
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