Pular para o conteúdo principal

Minha geração

Não entende que haja essa suspensão do prazer, que o produto adquirido em compra coletiva não corresponda exatamente ao que dizia a descrição, que o dia ansiado seja ora especial, ora a mesma maratona de apanhar tudo pelas mãos quase sempre suadas que deixam os objetos, xícaras, cadernos, livros e dedos, escorregarem, então o tempo vira um continummzinho desgostoso recheado de pequenas decepções, como encontrar o homem certo mas o homem certo quase no mesmo segundo torna-se figurativamente desinteressante, ou mesmo indiferente. E também não entende essa absurda escassez de sentido em algo que, na sua cabeça, está plenamente desenhado, acordar, ir ao salão, à faculdade, à praia, ao shopping, namorar, falar ao telefone, checar e-mail, fazer sexo, e ao final do dia, a despeito do acúmulo de atividades escolhidas prioritariamente entre tantas que não resultariam em retorno emocional e afetivo à altura, como adora destacar, sente: é como se estivesse meio lá, meio cá, e fala isso tudo pontuando as frases com um olhar bem lindo direcionado aos próprios pés, e só perceba isso depois de três cervejas na segunda-feira, naquele barzinho da moda, rodeada por gente so nice, acendendo um cigarro no outro, verificando mensagens, batucando no ritmo da música do DJ e lembrando de tempos em tempos que sexta-feira tem festinha na casa abandonada, mas como poderei ir?, pergunta-se, nem um tiquinho genuinamente aflita, se ela também irá, se ele provavelmente estará ali, disponível? Precisamente nessas horas, bem, meu Deus, de repente, o que é esse desconforto? Esse desconforto é dor de dente, só pode, mas nem isso, seus dentes são mais fortes que os ossos da perna de um mendigo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d