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A senhora poderia explicar a letra?

Doutora, é mais ou menos como se não doesse, é quase dor, fica muito perto, imagino que sentem na mesma fileira afastados um do outro por duas ou três cadeiras, e com isso quero dizer somente que não chega a ser rigorosamente um incômodo, mas admito, dói um pouco quando, antes de passar na catraca do ônibus ou no instante imediatamente anterior à impressão do extrato bancário, para ficar em apenas duas situações mais corriqueiras, tenho um relâmpago de lembrança, e esse minuto em que tudo estremece é tão chocante que descer na parada seguinte, que é uma coisa bastante simples, ganha contornos mecânicos, robóticos, uma perna, depois outra perna, finalmente a calçada, agora um passo, depois outro passo, me flagro quase ensinando o abecedário dos movimentos. Nessas horas me sinto totalmente arruinada, é algo absurdo, é claro que é, se me entende, se compreende como é ser invadida por pensamentos que não se controlam, vêm e vão, o tipo do pensamento que se evita o dia inteiro fingindo...

Superconsciência do "bang bang"

Havia entre ambos uma sombra, uma nuvem rala de tensão que apenas se insinuava, entretanto se era nuvem e essa nuvem denotava tensão, mas tensão apenas sugerida, não explicitada, o leitor há de querer saber de que maneira ela descobrira o mal estar do casal. Faro de mulher? Quem sabe. Era menos um mal estar do que um leve incômodo. Curiosamente, acometia os dois em simultâneo. De todo modo, o primeiro sinal lhe chegara mesmo pelas narinas, tamanha era a discrepância, não a discrepância, mas a distância que os separava naquele momento. Um em Paraty, outro em Jeri. Entre eles, interpunha-se, para seu governo, um balcão de cozinha americana. Sobre o balcão, um bloco de cimento recoberto de azulejos brancos que media cerca de dois metros por 40 cm de largura, repousavam dois copos grandes. Logo os copos receberiam: um pouco de leite em pó, três colheres de açúcar, achocolatado e água. Detrás do balcão, o Homem preparava o jantar. Sentada no pufe da sala, a Mulher aguardava enquanto as...

Exercício II

As plantas no parapeito da janela demandam alguma atenção, os peixes nem tanto, é certo que se preocupa com eles, menos com o dourado, mais com o lápis, mas não a ponto de interromper o que esteja fazendo para verificar se água e comida estão em conformidade com aquilo que o vendedor da loja de aquários recomendara. Não se permite desvelo além da cota estipulada por si mesmo ainda muito cedo. É sua maneira tímida de ser egoísta. É também uma forma indisfarçada de se distrair dentro de limites bastante definidos. Não porá os pés fora do círculo, não fará nada que o intime a dar saltos, não se arriscará a abandonar o Projeto, ensaiará passos que possa executar com facilidade, dominará cada quadrante do brinquedo e saberá com alguma exatidão quando as contas não fecharem. É sua lei marcial. Mas leis, mesmo as pétreas, são facilmente subvertidas, pensou enquanto retirava uma a uma as folhas secas da planta do jarro menor, precisamente aquela que mais carecia de água, cujo...

Exercício I

Era uma fábula sem animais. A história de um amor, por certo. Uma mulher que amasse um homem e um homem que amasse uma mulher, mas, como elemento complicador, um recurso dramático de que invariavelmente lançam mão escritores, artistas, dramaturgos e cineastas, nem esse homem bem menos essa mulher soubessem de antemão que esse amor lhes seria útil, ou único ou finalmente que esse amor seria amor, posto que o sentimento é por definição resultado de uma vontade inexpressa, e as vontades inexpressas respondem por 87% de qualquer intencionalidade segundo apontam pesquisas na área. A intencionalidade não pode ser confundida com a intenção. São como primas queridas que em outra oportunidade passassem em branco uma à outra. A intencionalidade é a intenção em estado de larva. A intenção é intencionalidade envelhecida. Por exemplo: aplique à palavra “casa” a repetição por infinitos segundos. Logo ela deixará de fazer qualquer sentido. É um exercício de desmaterialização que as crianças e os v...

Fatos da semana

ZUMBIS PODEM PERFEITAMENTE AMAR, DIZEM ESPECIALISTAS Como se não bastassem as vendas do Natal e as guirlandas que chegam enviadas por clientes desejando feliz ano novo antes do tempo, ainda há os zumbis que me aparecem sempre, e quase sempre me assustam quando se fingem de mortos, mas todos sabemos que zumbis são 1) criaturas horrorosas que se arrastam pelas ruas à procura de carne, de sangue, de nada mais que carne e sangue em proporções desiguais, e 2) só sossegam quando conseguem alguma porção de ambos que possa satisfazer-lhes parte da fome, conclusão) assim é a vida, mortos de fome correndo desesperadamente atrás do que comer, entretanto ora a fome é algo que se possa driblar? Obviamente não, mas pode-se perfeitamente domesticar a fome e ensinar a fome que não é hora de comer, o que deve comer e, mais importante, por que deve comer. Mas fome que é fome sequer entende palavras, ela come. CASAL ENCONTRA NOSSA SENHORA, A ESCRITORA PERDIDA Não há nada de anormal comigo, disse pela te...

Um sapo previsível

Um erro? Foi o que pensou quando viu o copo de suco de laranja tombar, molhando por completo a página da revista semanal na mesinha de centro. O erro havia sido cometido bem antes, antes mesmo do primeiro encontro, naquele dia fora avisado reiteradamente, pequenos sinais emitidos por fontes a que não costumava atribuir qualquer credibilidade, mas que, agora, consultava sempre que dispunha de tempo, de tempo e paciência, de tempo, paciência e fé. Além do amor cego que funciona muito bem como uma caução. Ainda assim desconfiava de que qualquer coisa ali parecia sempre destinada ao disparate, e resolvia arriscar. O risco certamente valeria a pena quando transcorresse o tempo necessário, entretanto essa fatia vagarosa era caprichosa a ponto de se converter em infinitos potes de sorvete expostos à incandescência, que era a idéia mais próxima que tinha de algo que se esvai facilmente à simples passagem das horas, que era uma sensação bastante comum que o acometia sempre que estavam andand...

Uma carta como todas as cartas

Não sabia: era uma carta de despedida, uma carta de boas vindas, uma carta de cobrança, uma carta de intenções ou uma carta de amor? De todo modo, sentiu que deveria escrevê-la, e foi o que fez. Às 11h11, tomou o papel, soltou o papel, ligou o computador, fez café, sentou-se, pegou uma almofada, assentou as costas, tirou a sujeira dos pés, lavou as mãos, sentou-se novamente, desvestiu a camisa, pôs as sandálias, descalçou as sandálias, ouviu música, falou no telefone com uma amiga da escola. Só então pensou que não tinha razão para dizer o que quer que fosse dizer, que a natureza do tempo dispensara as cartas, que agora nada carecia de notas de rodapé, e mesmo essa constatação não seria suficiente para demovê-lo do intuito de escrever uma carta naquela noite. E mesmo a temperança de uma vida cheia de percalços não parecia ter valido de nada, ele estava convencido de que somente uma carta, seja de que natureza fosse, o salvaria do desespero que era encarar a cama encostada na parede e o...