Pular para o conteúdo principal

Uma carta como todas as cartas

Não sabia: era uma carta de despedida, uma carta de boas vindas, uma carta de cobrança, uma carta de intenções ou uma carta de amor? De todo modo, sentiu que deveria escrevê-la, e foi o que fez. Às 11h11, tomou o papel, soltou o papel, ligou o computador, fez café, sentou-se, pegou uma almofada, assentou as costas, tirou a sujeira dos pés, lavou as mãos, sentou-se novamente, desvestiu a camisa, pôs as sandálias, descalçou as sandálias, ouviu música, falou no telefone com uma amiga da escola. Só então pensou que não tinha razão para dizer o que quer que fosse dizer, que a natureza do tempo dispensara as cartas, que agora nada carecia de notas de rodapé, e mesmo essa constatação não seria suficiente para demovê-lo do intuito de escrever uma carta naquela noite.

E mesmo a temperança de uma vida cheia de percalços não parecia ter valido de nada, ele estava convencido de que somente uma carta, seja de que natureza fosse, o salvaria do desespero que era encarar a cama encostada na parede e os dois controles remotos que cultivava zeloso há menos de um ano, um para o DVD, outro para a TV.

Tipicamente geminiano, ela teria dito se acreditasse em signos e ele de fato houvesse nascido sob a influência de gêmeos. Os que pertencem a essa casa zodiacal alimentam uma obsessão pela correspondência que se reflete na compulsão por redigir os pensamentos, que são também sentimentos, ao passo que desconsideram a vida prática. Outra compulsão é a busca desesperada por estruturas assemelhadas. No fundo, querem apenas evitar o dissenso, creem que a chave para o sucesso esteja fatalmente na conjunção de aspirações, no encontro desinteressado de corpos e mentes, ele pensa, a bem dizer, que a vida é uma maratona leve, que começa num parque e termina à beira mar, sempre festejada com bastante água de coco e fogos de artifício, e nela não cabem nem perdedores nem vencedores, a vida, sob esse ponto de vista infantil, é uma partida de damas entre bêbados.

De todo modo, não acreditava em nada disso, e sabia que não precisaria explicar nada para ela.

E foi nesse instante nada luminoso que percebeu: era uma carta de despedida, uma carta de boas vindas, uma carta de cobrança, uma carta de intenções ou uma carta de amor? A carta que precisava escrever antes de dormir era todas as cartas possíveis. E pôs-se a fumar e a andar pela casa, pensando no melhor parágrafo para abrir a noite. A vizinha voltara a mexer nos pratos entulhados na pia, as corujas piavam, os ratos corriam estrepitosos no terreno ao lado, e uma música distante reivindicava qualquer porção de amor, e foi assim que começou a falar de si.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d