Pular para o conteúdo principal

Um sapo previsível

Um erro? Foi o que pensou quando viu o copo de suco de laranja tombar, molhando por completo a página da revista semanal na mesinha de centro.

O erro havia sido cometido bem antes, antes mesmo do primeiro encontro, naquele dia fora avisado reiteradamente, pequenos sinais emitidos por fontes a que não costumava atribuir qualquer credibilidade, mas que, agora, consultava sempre que dispunha de tempo, de tempo e paciência, de tempo, paciência e fé. Além do amor cego que funciona muito bem como uma caução.

Ainda assim desconfiava de que qualquer coisa ali parecia sempre destinada ao disparate, e resolvia arriscar. O risco certamente valeria a pena quando transcorresse o tempo necessário, entretanto essa fatia vagarosa era caprichosa a ponto de se converter em infinitos potes de sorvete expostos à incandescência, que era a idéia mais próxima que tinha de algo que se esvai facilmente à simples passagem das horas, que era uma sensação bastante comum que o acometia sempre que estavam andando juntos.

As impressões são terrivelmente falsas, disse, fatalista, e foi apanhar uma toalha na cozinha. Ainda dividiam o apartamento, mas era como se habitassem dimensões distintas, era como se planejassem secretamente seqüestrar e matar um ao outro.

O tempo necessário, repetia-se, sempre demarcando cada palavra com um hiato ensaiado nos tempos de adolescente. Esse tempo também podia demorar, ou nunca chegar, ou mesmo não ser necessário. Tinha errado, consideraria ainda por muitas vezes enquanto abria a janela do quarto e apertava seguidamente a tecla que mudava os canais da televisão. Procurou um canal de leilão de nelores, acabou parando num documentário sobre John Lennon, migrou depois para uma série muito famosa sobre vampiros e, após 15 minutos, para uma sobre serial killers, mas acabou voltando para o leilão, que exibia gados alvíssimos que se chamavam Pérola e Infante.

Então passou a outro documentário: as Maiores e as Menores Catástrofes da Humanidade. Incêndios, guerras, assassinatos, bombas, explosões e fenômenos da natureza que foram responsáveis por centenas de milhares de mortos ao longo da história. Uma mulher que foge surpreendentemente de um ataque de piranhas. Um homem que luta contra um tubarão, e morre. Era o que precisava naquela noite.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...