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Não era a primeira vez

Era como se estivesse ouvindo Roberta Miranda e, de repente, ela, a namorada, repetisse um trecho da música, precisamente aquele que diz vá com Deus, vá com Deus, o amor ainda está aqui, vá com Deus, logo ele, que não cria em Deus havia pelo menos vinte anos, logo ele, que faltara as aulas do catecismo não porque quisesse mas porque o dinheiro da passagem era insuficiente e seria por ainda muitíssimo tempo, de maneira que somente a escola era prioridade, a escola e a natação, a escola, a natação e o ballet da irmã mais nova. Logo ele precisava inevitavelmente de alguma garantia, não de qualquer garantia, mas de uma garantia cuja essência dispunha sobre todas as demais garantias, uma garantia que era sobretudo matriz das outras, que não fosse somente um arremedo de garantia, mas voltava a dizer um salvo-conduto para amar. Era assim, explicava para ela quando brigavam sem xingamentos: é fundamental que me diga claramente que precisa de mim e apenas de mim, então posso ficar tranquilo e l...

Teorema incomum

“O sentimento de estar pleno sem estar pleno é confuso”, questionou a premissa apresentada há pouco pela professora de filosofia enquanto verificava no celular uma mensagem de Luciana do 3º B garantindo que a tarde inteira estaria sozinha, em casa, e que os pais sequer perceberiam a cama amarrotada quando voltassem, de modo que ele, Rafael, 17, poderia considerar agora sem qualquer receio a possibilidade antes remota como algo concreto, que, a depender da vontade de cada um, e a dela parecia irrefreável naquele dia, logo seria executada. “São idéias aparentemente contraditórias”, respondeu a professora, uma mulher de 35 anos, bonita, cansada, vestindo jeans, camiseta, meias de algodão e calcinha larga, confortável, e sutiã de bojo, e relógio grande no pulso esquerdo, o que era uma novidade, concluindo um mestrado, recém-separada, flertando com um colega de trabalho, discutindo com a mãe sempre que lhe perguntavam quando finalmente iria encarar a vida como uma estrada cheia de percalços...

Saiu ali

VOTO PELO SEXO, SEMPRE Henrique Araújo henriquearaujo@opovo.com.br Marta, ex-atendente de telemarketing, 27, morena, tatuagem na parte interna da coxa esquerda, explodiu na semana anterior à do pleito. Estavam assistindo a um quadro do sabático “Zorra Total”. Espichados na cama, cada um abraçado a um lençol diferente, o dele com figuras geométricas, o dela salpicado de margaridas, quando a mensagem no celular de Antônio fez soar uma guitarra de Neil Young. Era anônima, e dizia: “Vontade danada de estar ctg. novamente. Um bj daqueles, meu carrapicho”. Antônio é jovem. Tem 22, divide apartamento com Marta há dois anos. Ele paga água e energia, ela faz as compras e cozinha. Ele limpa a casa. Ela organiza a papelada burocrática em pastas – uma para cada área da vida. Ele desenha, ela compõe versinhos que depois lê em recitais da faculdade de Letras, que depois esquece em arquivos de computador. Ele anota nomes de bares num bloco e coleciona cartazes de cinema. Ela sobrepõe marcas de biquín...

O menino da fila

Tem o coração suave, mas nem tanto, repetiu. A vida é boa. Costuma andar no parque da cidade mas apenas quando sente que se engordar mais um pouco perderá as namoradas conquistadas numa única noite, e, agora, o que não quer é perder qualquer pessoa, não quer perder nada, nem mesmo arriscar-se a ganhar, no que em alguma medida seria próximo de perder. Os hábitos não são hábitos, são surtos que se encerram tão logo se concentre em algo suficientemente interessante, pensou também, e tudo isso veio enquanto esperava o próximo da fila terminar de passar a conta telefônica no leitor óptico, aquela luz estriada que percorre os códigos de barras como se fosse as mãos e ele, uma espécie de adivinhador do futuro que jamais vem. Teme que a casa esteja fora de ordem quando voltar do trabalho, que os jarros das plantas hajam ressecado subitamente enquanto esteve fora, que a queda de energia inesperada no final da tarde possa ter danificado algum aparelho eletrônico que usa para espantar a falta de ...

O mavioso acontece

Era simples: não sabia o que era a Dor. Até senti-la, obviamente, exatos 30 meses depois do começo idílico como todo começo parece ser, não tinha a mais vaga noção do que poderia ocorrer a alguém que perdesse alguma coisa querida, docemente querida, de modo que, ao sair do quarto por tanto tempo habitado, parou um instante na soleira da porta e comprimiu levemente a mão sobre o peito. Engoli um abacaxi, foi o que pensou, confundindo a Dor com uma fruta que se descasca e se come em rodelas. Mas logo viu que as frutas nada têm a ver com sentimentos, viu também que seríamos incapazes de permanecer muito tempo com algo maior que uma bola de tênis entalado na garganta, que, mesmo os objetos indesejados que escorrem goela abaixo não se demoram mais que alguns dias, meses ou anos ali, atravessados, causando desconforto suficiente a ponto de nos fazer vomitar o café da manhã tão logo bata ao portão do estômago. Há enzimas no corpo humano, lembrou da aula, que se encarregam elas mesmas de reduz...

De mãe para filho

Achava que por ter sido bom continuaria sendo indefinidamente, no que incorria em erro severo, nem tudo que parece é, disse repetindo a frase predileta da mãe, uma enfermeira que tinha passado quinze anos casada e outros sete namorando o seu pai, o dele, e, já muito tempo depois da separação, depois mesmo de três filhos que não eram os mais lindos mas eram os seus, os dela, apanhava-se na cozinha considerando o que fizera durante a vida, por que afinal de contas não pediu educadamente logo à primeira vez, logo quando tudo lhe pareceu inequivocamente sem futuro: “Por favor, Marcelo, queira retirar-se desta casa e nunca mais aparecer na minha vida.” Contudo não era melancolia o que alimentava, dizia enquanto retorcia os nós dos dedos. Era uma questão de matemática, quero saber por que passei tanto tempo sem entender que o amor assim como os valores da conta de energia e as marcas de bronzeado se transforma e atravessa extensos encanamentos, quero finalmente poder ilustrar a única mutação...

Para fazer amigos e influenciar pessoas

87. Escolher filmes é diferente de escolher um atum ou um tipo de sabonete. Envolve dezenas de variáveis. É uma ciência tão inexata quando a filosofia e a gastronomia. Quase nunca se sabe o que se quer ver. Em casa, logo às primeiras cenas, descobre-se que a fita certa era aquela que ficara ao lado do bom cinema de aventura e que, por medo, você esqueceu. 51. Domingo é dia oficial do remorso em 97 países. Na Guatemala, por exemplo, é somente aos domingos que milhares de pessoas, rotineiramente frenéticas, costumam ficar em casa e remoer culpas ancestrais com a dedicação de uma puta e a disciplina de um monge. A prática, tão antiga quanto a de sofrer calado, requer alguma habilidade com certo tipo de silêncio que, grosso modo, consiste em falar sem dizer absolutamente nada. 65. Ainda sobre o remorso, que é a culpa insurgente. Há dois anos, a revista britânica Nature publicou ensaio dos mais gabaritados em que dizia, sem meias palavras: sentir-se com remorso elimina pelo menos 130 toxin...