Pular para o conteúdo principal

O menino da fila

Tem o coração suave, mas nem tanto, repetiu. A vida é boa. Costuma andar no parque da cidade mas apenas quando sente que se engordar mais um pouco perderá as namoradas conquistadas numa única noite, e, agora, o que não quer é perder qualquer pessoa, não quer perder nada, nem mesmo arriscar-se a ganhar, no que em alguma medida seria próximo de perder.

Os hábitos não são hábitos, são surtos que se encerram tão logo se concentre em algo suficientemente interessante, pensou também, e tudo isso veio enquanto esperava o próximo da fila terminar de passar a conta telefônica no leitor óptico, aquela luz estriada que percorre os códigos de barras como se fosse as mãos e ele, uma espécie de adivinhador do futuro que jamais vem.

Teme que a casa esteja fora de ordem quando voltar do trabalho, que os jarros das plantas hajam ressecado subitamente enquanto esteve fora, que a queda de energia inesperada no final da tarde possa ter danificado algum aparelho eletrônico que usa para espantar a falta de sono sempre que fica à espera do que não sabe o que é.

Ainda assim, tem o coração perfeito, suave, que navega agora mesmo em redemoinho mas navega a bem dizer manualmente, sem recorrer a expedientes extravagantes, tudo porque é um coração conservador, que deseja querer o que qualquer um quer, um coração que sequer pode ser diferenciado numa sala de aula da 3ª séria A, manhã, na quarta cadeira da segunda fila, bem ao lado da janela.

Mas não sabe o que é, pensa finalmente, e em seguida requer ao caixa do supermercado uma nova embalagem para as pilhas porque aquela, aquela que tinha em mãos, era muito inadequada para tudo que pretendia fazer.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d