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De mãe para filho

Achava que por ter sido bom continuaria sendo indefinidamente, no que incorria em erro severo, nem tudo que parece é, disse repetindo a frase predileta da mãe, uma enfermeira que tinha passado quinze anos casada e outros sete namorando o seu pai, o dele, e, já muito tempo depois da separação, depois mesmo de três filhos que não eram os mais lindos mas eram os seus, os dela, apanhava-se na cozinha considerando o que fizera durante a vida, por que afinal de contas não pediu educadamente logo à primeira vez, logo quando tudo lhe pareceu inequivocamente sem futuro:

“Por favor, Marcelo, queira retirar-se desta casa e nunca mais aparecer na minha vida.”

Contudo não era melancolia o que alimentava, dizia enquanto retorcia os nós dos dedos. Era uma questão de matemática, quero saber por que passei tanto tempo sem entender que o amor assim como os valores da conta de energia e as marcas de bronzeado se transforma e atravessa extensos encanamentos, quero finalmente poder ilustrar a única mutação possível de variáveis que pareciam imutáveis.

“Marcelo, por favor, não vá embora”, teria dito segundo testemunhas na manhã em que a professora do filho caçula ensinara os pontos cardeais. Era um péssimo sinal, porque primeiro o filho não havia conseguido anotar que norte e sul eram pontos antípodas e passara a trocar um pelo outro quando voltava para casa, sempre se perdendo, sempre entrando na sala errada. E depois porque a loucura apaixonada da mãe era a loucura apaixonada do filho.

De modo que, dali a 20 anos, tudo se repetiria.

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