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Não era a primeira vez

Era como se estivesse ouvindo Roberta Miranda e, de repente, ela, a namorada, repetisse um trecho da música, precisamente aquele que diz vá com Deus, vá com Deus, o amor ainda está aqui, vá com Deus, logo ele, que não cria em Deus havia pelo menos vinte anos, logo ele, que faltara as aulas do catecismo não porque quisesse mas porque o dinheiro da passagem era insuficiente e seria por ainda muitíssimo tempo, de maneira que somente a escola era prioridade, a escola e a natação, a escola, a natação e o ballet da irmã mais nova.

Logo ele precisava inevitavelmente de alguma garantia, não de qualquer garantia, mas de uma garantia cuja essência dispunha sobre todas as demais garantias, uma garantia que era sobretudo matriz das outras, que não fosse somente um arremedo de garantia, mas voltava a dizer um salvo-conduto para amar.

Era assim, explicava para ela quando brigavam sem xingamentos: é fundamental que me diga claramente que precisa de mim e apenas de mim, então posso ficar tranquilo e livre dos maus espíritos e visitar ainda hoje a rede de pequenos supermercados de receita líquida entre um e dez milhões de reais mensais e em seguida elaborar um breve relatório, é importante denotar sem ruídos na comunicação que a minha presença na sua vida implica uma série de repercussões positivas, tão positivas que, hoje, você não saberia viver sem mim exceto se morresse e a hipótese de seguir vivendo se tornasse por força do destino imperativa e não apenas um quadro meramente ilustrativo.

Nessas horas, ela o olhava apenas moderadamente séria e calculava que o namorado embora fosse um homem extraordinário, não exatamente bonito, mas charmoso, inteligente e um ótimo amante, tinha um defeito, não digo defeito, mas uma falha menor: não sabia amar. Pior: tecnicamente, sabia amar, mas amava de uma maneira diferente, esquisita, que era uma mistura em doses avantajadas de desespero, angústia, desesperança e ansiedade, tudo anabolizado por um sentido de urgência que se impunha a tudo, ao trabalho, ao sexo, ao amor propriamente dito, arriscava-se a dizer se estivesse agora mesmo frente a frente com alguma plateia de estudantes de psicologia, diria encarando um aluno na primeira fila “ele é o homem da minha vida, ou seria se no lugar da melancolia houvesse qualquer coisa mais... Qualquer coisa menos dolorida para compensar tudo que dói”.

“Se ainda existe amor, olhe bem pra mim e me diz enfim que sou teu, se ainda existe amor, pega em minha mão e me diz então que sou teu”, ele cantou suavemente como se estivesse frente a frente com alguma plateia de programa de auditório. Mas ali só havia ela, a namorada por quem se apaixonara em sufoco galopante há menos de um ano, eram assim as suas paixões, duravam pouco, reconhecia, eram devastadoras e via de regra não permitiam que operasse uma soma comum como dois mais dois, ou resolvesse uma sequência simples do binômio de Newton, ou lograsse atinar plenamente com o debate intelectual que estivesse em voga, não que precisasse ocupar-se dessas trivialidades, apenas pretendia demonstrar que, sempre que se via possuído por essa pomba gira chamada paixão, ele, o namorado, ficava sem eixo. Sem eixo, não trabalhava. Sem trabalho, não tinha distração. Sem distração, a entropia era uma constante. A energia consumia-se basicamente na tarefa de fazer o sistema funcionar, e, a longo prazo, o sistema recusava-se a existir por existir. Uma realidade falimentar.

De modo algum isso era problema, consideraria minutos depois. Uma vez que à paixão sucedesse qualquer coisa menos agressiva como o amor, ele relaxaria, a vida voltaria a ser uma maravilhosa correnteza de banalidades e a programação de televisão aberta deixaria de ser um suplício com todos esses casais de novela beijando-se sebosamente em horário nobre. Então viu pela primeira vez o quanto associava a paixão à desorganização criativa e o amor ao que ontem mesmo ouvira da boca de alguém: o caos calmo.

Entretanto, tudo isso não passava de pura teoria. Uma teoria que tinha valido para quase tudo, menos para a situação de agora, disse e apanhou um copo com suco de goiaba que havia deixado displicente sobre a pia enquanto ela mudava o disco na vitrola, afinal eram o tipo de casal jovem cujo sonho de consumo incluía carro, roupas, viagens ao Sri Lanka e uma vitrola velha para ouvir os velhos discos de vinil.

Estavam nesse pé quando, para resumir a história e abreviar as agonias, ele lembrou o filme que haviam assistido na véspera naquele cinema do centro, um filme irregular que se chama “A suprema felicidade”. Ela, a namorada, não percebera que tinham começado a discutir exatamente por causa do filme do Jabor, que ela detestava, numa das cenas Maria Flor arranca a própria roupa e exibe os seios, eles são pequenos, lindos, parecem uvas, passas, tomates-cereja, por alguma razão os peitinhos miúdos da atriz, que tirara a roupa pela primeira vez numa produção audiovisual, têm o condão de fazê-los discutir, então discutem, brigam, magoam-se como se nada mais entre eles fizesse sentido e ao menos por dois ou três minutos consideram a possibilidade concreta de se separarem definitivamente, quando ele, o namorado, relembra a cena em que Marco Nanini, o grande Nanini, o maior ator vivo do Brasil, interpretando um músico um tanto louco busca definir aquilo que seria a suprema felicidade: o amor.

Após várias tentativas, todas frustradas, Nanini sintetiza tudo bem assim: o amor é foda, no que concordaram sem pestanejar.

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