Pular para o conteúdo principal

Terminando o ano

 

Esse foi o ano dos bebês reborn e dos labubus, dos dispositivos de substituição e transferência de afeto, da desafetação e do dar de ombros para o desfile acelerado da vida.

Ano do boom da IA e da promessa de um futuro edênico no qual o virtual e o real se equivalem, ano da tiktokzação do sofrimento e da grande diáspora das redes.

Ano da fuga das galinhas, dos filmes de terror e do Neymar, ano da prisão e da romantização da prisão dos famosos e do presidente em sua eterna crise de soluço.

Ano do vazamento e da sorte de adivinhar os temas sobre os quais milhões sonham em escrever na hora da prova, ano do mecanismo da sorte, da estrutura secreta que produz o futuro.

Ano do ostracismo do panetone e da reabilitação do ovo, ano da graça e também da desgraça, ano do recolhimento meditabundo e do desbunde, da ioga e do forró raiz.

Ano das desescritas do eu, da arte do baixo ventre, da grafia do corpo sem corpo, enfim, ano de toda sorte de golpe mercadológico para vender mais no país que menos lê.

Ano da literatura como performance, dos romances que curam, apaziguando as dores da alma. Ano das bibliotecas e das estantes como personagens, ano de procurar nos livros resposta para as agonias do espírito.

Ano de se enganar, de supor que haja qualquer salvação, nos livros e fora deles, ano de procurar e não achar ou de encontrar sem ter procurado.

Esse foi seguramente o ano de fechar perfis e privar as contas, de postar menos, de sair nas fotos com o braço encobrindo o rosto, de granular a imagem ao ponto da saturação, de evitar o excesso e praticar o desaparecimento programado em vez da obsolescência.

Ano das tecnologias d’antanho, ano da Cybershot empoeirada, do PS1, das brincadeiras de antigamente.

Ano da reanalogização dos cotidianos, ano do grande recuo, ano do longo retorno, ano da queda e da ascensão.

Ano em que a “força silenciosa do possível” se impôs como regra, reconduzindo os destinos a um porto-seguro.

Ano em que ver demorou mais que o habitual, em que nos deparamos com os quadros nas paredes e com os filmes nas telas e os livros nas prateleiras e resolvemos de bom grado examinar conscienciosamente cada detalhe da superfície e cada aspecto da existência tão banal de tudo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...