Quero sair em defesa de Jair e do seu direito de caçar palavras, de procurar no vazio da existência algo que a preencha, ainda mais na vacuidade dos dias sem eira nem beira de uma prisão durante a qual mesmo o soluço é um acontecimento digno de nota.
Lutar com as palavras entre quatro paredes, adivinhar nas colunas e linhas uma qualquer formação com significado próprio, a isso também se pode chamar de leitura?
E nem digo para fins de remição, ou seja, de redução da pena, de progressiva embora lenta e enervante abreviação do tempo do cárcere.
Digo, Jair é um leitor como qualquer outro se de repente, entre um calhamaço de Dostoievski e uma brochura com letras embaralhadas, se entre um Machado e um bobbie goods, prefere estes àqueles?
Tivessem um grão de inteligência, os filhos de Jair estariam neste momento convocando marchas nas ruas não pelo projeto de anistia ou pela dosimetria, mas por uma ampliação do que se entende como leitura.
Seria uma via mais prática para reduzir os anos de regime fechado do pai, que, por tabela, passaria como um pedagogo da inclusão de toda forma de livro como ato de leitura, pelo reconhecimento de toda obra como relevante, pela canonização dos que estão a anos luz do altar da grande literatura como parte desse panteão.
Jair erguido nos braços dos leitores de “Café com Deus pai” e todos os livros vistos com desconfiança e esnobismo pela intelligentsia uspiana que mora em cada pos-graduando do país e que encabeçam as listas de mais vendidos da “Veja” e de outras revistas.
Por que não?
Talvez o ex-mandatário encontrasse aí, nessa cruzada anti-beletrista, uma raison d’être para se recolocar no mercado (literário e político), assumindo uma persona genuinamente outsider, espécie de Conde de Monte Cristo de araque, que ele poderia citar sem se dar ao trabalho de ler porque a mera alusão à obra dispensa qualquer um de ir além da lombada em tempos de fetichização de listas e de ranking de leituras fantasiosas mais do que de fantasias.
Para piorar (ou melhorar), Jair poderia levar esse storytelling ao extremo, fingindo-se não somente gestor, mas autor. E não apenas um autor brasileiro sem público, como se vê às tantas, mas um escritor que está vertendo suas memórias para livro em chave autoficcional.
E não somente para um volume, mas uma trilogia cujos tomos se chamariam evidentemente de “zero um”, “zero dois” e “zero três”, em minúscula mesmo, para denotar a simplicidade do estilo tardo-literário de um ex-presidente que apenas na reclusão forçada da penitenciária e na solidão ensimesmada de seu ralo pensamento redescobriu a contragosto o prazer da não leitura, no que se mostraria novamente alinhado em prosa e verso com os anseios de cada brasileiro, independentemente de sua classe.
E então Jair, empunhando caça-palavras e cadernos de pintar como totens de um novo modernismo, reclamaria ao Brasil políticas de inclusão, obrigando-se a constar entre as questões do Enem, no qual figuraria como uma nova representação da vertente marginal-golpista das letras nacionais, uma corrente sem escola vocacionada para escrever errado por linhas retas.
Nada disso, porém, passa agora pela cabeça de Jair e da filharada, mais preocupada com a mundanidade da política e em fazer do Congresso um seminário dos ratos que trabalha incansavelmente de costas para o eleitor do que uma espécie de feira literária sem livros nem literatura.
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