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Excesso

Há dias ensaio uma entrada no Substack, o que dizer, como dizer, quando e para quem, mas falar de "entrada" com essa solenidade pode soar como se tivesse grandes pretensões na plataforma, pretensões estéticas e políticas, isso sem falar nas acadêmicas, já que neste momento me vejo às voltas com a escrita de uma tese e isso fatalmente vazaria para o texto, seria ingenuidade imaginar que não.

No entanto, dizer que não tinha ambições seria enganoso ou não totalmente verdadeiro.

Talvez porque no fundo pense que sim, eu deveria começar a escrever seja o que fosse, sobre mudanças de casa, leituras em andamento, exercícios físicos, métodos de limpeza de piscinas ou patologias arquitetônicas num edifício de área nobre de Fortaleza.

Ou não, talvez não, eu me convenceria de que está tudo bem assim, está tudo bem aqui, ninguém precisa de mais uma newsletter avulsa, tendendo ao pessoal, egoica sem parecer umbiguista, com um retrogosto persistente de eruditismo mal cultivado e repertoriado apenas com trechos pescados ao acaso, frases ligeiras e provocativas como postagens salpicadas de humor na medida certa, tudo parecendo bastante adequado ao meio e também aos tempos.

E isso me preocupa mais que qualquer coisa, ou seja, o fato de que indiretamente teria de assumir o compromisso de envio de algo cuja preparação eu estaria encarregado de levar adiante sem estar totalmente persuadido de sua relevância, mesmo considerando que quase sempre se escreve para deleite próprio – ou pelo menos é isso que costumamos dizer uns aos outros quando perguntados sobre por que fazemos o que fazemos.

Afinal, uma vez por semana, duas, uma a cada quinze dias? Mensal ou bimestral, com periodicidade aleatória, como vejo algumas na praça, a exemplo dessas mensagens que chegam de repente e pelas quais ninguém esperava, cartas extraviadas que subitamente encontram seu destinatário?

E ainda restaria o problema do tema – sobre o que escreveria se realmente escrevesse uma newsletter?

Quem seria o narrador? Em primeira ou terceira pessoa, confiável, onisciente, diretamente interessado na história, manipulador, sem domínio dos acontecimentos, moralmente indefensável, cidadão exemplar, empoderado, desconstruído, hetero top, esquerdomacho?

Ou já não importa quem fala, tal como supunha Foucault naquele artigo de 1969?

Considero que nada disso é trivial, isto é, trata-se de preliminares diante das quais me vi impossibilitado de avançar, seja por que razão fosse, embora intuitivamente suspeite de que o melhor é sempre começar sem que essas questões formuladas previamente se apresentem como obstáculos intransponíveis, como acho que são agora.

Logo, se tinha de fato a intenção de entrar no Substack, o primeiro passo deveria ter sido escrever e pronto, sem cálculo de ganhos ou perdas, e isso eu não fiz, de modo que, passado esse tempo, o adiamento se coagulou como um nó para o qual eu olho e tento decifrar, mais ou menos como um arqueólogo que examina pegadas antigas ou um dermatologista que encara uma erupção cutânea no braço de uma paciente. 

Dando tratos à bola, eis o impasse: por que é tão difícil começar?

Minha hipótese (sim, tenho uma) é o excesso. Na verdade, o que tenho sentido, muito mais do que elaborado, como uma superabundância de relatos de toda espécie, textos mais ou menos prazerosos, de tamanhos diversos, mais ou menos interessantes que recebo todos os dias na minha caixa de e-mails e aos quais dedico algum tempo de leitura – digamos que, em alguns casos, mais do que eu deveria.

O excesso de reflexão autocentrada cujo denominador comum tenho a impressão de ser não apenas o mesmo sujeito, mas um eixo de experiências a partir das quais se elaboram essas representações textuais tipicamente do Substack, o que me leva a pensar se não haveria uma estética dessa plataforma.

Mais que uma estética: um perfil, um discurso, um tipo de autor “ideal” (naquele sentido weberiano) que performa uma autoconcedida autoridade escritural explorando, num mesmo diapasão, um conjunto limitado de fenômenos sociais dos quais esse recorte de pessoas é parte indissociável – uma certa classe média letrada concentrada no sul/sudeste (e noutros centros urbanos) regurgitando os signos de uma cultura eminentemente livresca.

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