Há em andamento uma eufemização das relações de trabalho que mais parece uma brincadeira de roda, infantil, um esconde-esconde com crianças que se põem atrás das cortinas e permanecem com os pês à mostra dos adultos, que as encontram sem dificuldades.
Assim é com essa gramática que se presta ao papel de escamotear regras simples, transações costumeiras e contratos habituais. De repente, soa abusivo e cafona falar de empregado e patrão, mas não de colaborador e líder, um par ordenado cuja única vantagem é dar a entender que se trata de uma parceria o que, de verdade, é exatamente o seu avesso.
Como se em essência a natureza dos vínculos houvesse se alterado, e todos sabemos que não, tudo segue mais ou menos do mesmo jeito, tal como já previra a canção premonitória “Xibom bombom”, do grupo As meninas.
Lá pelas tentas, a letra diz: “Analisando essa cadeia hereditária / quero me livrar dessa situação precária / onde o rico (cada vez fica mais rico) / E o pobre (cada vez fica mais pobre) / E o motivo todo mundo já conhece / é que o de cima sobe e o de baixo desce” (1999).
Ora, ora, os versos (chamemos assim) são autoexplicativos, têm o potencial de um “Manifesto comunista” para tocar em festas de aniversário no final daquela década regada a cerveja quente. É Marx adaptado para o axé noventista nos palcos do programa do Gugu, com mensagem revolucionária e ainda atual em tempos de queda no aumento do IOF e dificuldades para taxar os super-ricos num Congresso que protege banqueiro sob desculpa de defender austeridade fiscal.
Mas não apenas, o coletivo “anarco-feminista” As meninas alude nessa passagem às noções de circularidade e de transmissão de privilégios e capitais (a tal “cadeia hereditária”) por trás da manutenção de um quadro de precarização já por essa época, antes de qualquer plataformização e mais-valia cognitiva.
Está tudo ali, resumido e poetizado a partir da forma-canção sob chave pagodeira, feita para dançar bebendo Campari: o de cima sobe e o de baixo, desce. Longe de incorrer em tautologia, a ênfase na explicitação do sentido tem por objetivo enfatizar o caráter irrecorrível dos procedimentos de dominação empregados pelo capital, resultando nessa cadeia reiterativa da qual é difícil, senão impossível, escapar.
É porque o que sobe sempre vai subir e o que desce, descer, que o eu lírico da música conclui: “Quero me livrar dessa situação precária”. Marxianamente falando, pode-se ver aí uma tomada de consciência de classe, embora Bourdieu tivesse muitas reservas quanto a essa possibilidade de ruptura com a exploração incorporada ao corpo e tornada habitus, mas isso é conversa para outro dia.
O que interessa realmente aqui é entender o papel do eufemismo como estratégia de mascaramento da realidade, dando a ver não o dito, mas o suposto, o presumido por falseamento, o postiço fabricado como real.
Como figura de linguagem que não diz o seu nome, ele agencia o simulacro para encobrir o concreto – que não é a verdade última, entenda-se, mas uma verdade histórica e factual, demonstrável por instrumentos usados no dia a dia.
Por exemplo, é fácil comprovar que os deputados e senadores não estão de modo algum preocupados com o gasto público, mas com seus próprios bolsos, do contrário não fariam tanta pressão para aumentar e liberar maior volume de emendas ou votar para ampliar o número de legisladores, concordam?
E, no entanto, o que se nota é o discurso segundo o qual o governo dispendioso encontra um contrapeso na ação profilática de congressistas, que então, numa mostra de compromisso inarredável com a coletividade, aplicam uma lição de contenção e de republicanismo ao impor uma mudança de rota para o presidente.
Eu teria mais a dizer ainda, especialmente sobre As meninas e sua versão do axé de protesto – em contraposição àquela modalidade gutural e pobremente vocálica representada por Bell Marques –, mas tenho de parar por aqui por “motivo de força maior” (um eufemismo).
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