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Segunda temporada de “The Last of us” chega ao fim – ainda bem

 

A título de introdução, quero deixar claro que este não é um texto de “fã”, ou seja, alguém cujo evangelho íntimo prescreve absoluta reverência a obras e personagens consagrados, para os quais passa a exigir fidelidade caninamente devocional.

Dito isso, a segunda temporada da série “The Last of us”, adaptação de um jogo de videogame produzida pelo HBO Max (ou apenas Max, ou só HBO), me fez querer voltar ao game imediatamente.

Não por saudosismo ou qualquer outro ímpeto consumista, entenda-se, mas porque não queria que o retrogosto amargo deixado pela produção audiovisual se mantivesse por muito mais tempo.

Isto é, eu queria apagar rapidamente grandes porções da nova temporada, a cargo de Craig Mazin e de Neil Druckmann, notadamente aquelas responsáveis pela metamorfose de Ellie, vivida na TV por Bella Ramsey, uma atriz fenomenal que esteve boa parte do tempo à mercê dos maneirismos de um diretor que olhou para o produto original e pensou: eu posso estragar isso aqui com uma mão nas costas. E foi lá e fez.

Vejam só, à parte exageros, não é que TLOU seja inferior a muita coisa que está sendo exibida hoje, porque não é, principalmente se se considerar apenas aspectos técnicos. Visualmente, a série continua impecável, cenas como a do aquário e a da morte de Nora se mostraram acertadas porque combinavam essa exuberância gráfica com uma atmosfera psicológica carregada.

Ocorre que, e aqui enfileiro uma maçaroca de razões pelas quais esta temporada fez tabula rasa não somente do jogo, mas de tudo que havia construído na merecidamente elogiada temporada anterior – menos pela presença de Pedro Pascal interpretando Joel e mais porque o trabalho soube explorar com maestria pontos altos do game, acrescentando-lhe profundidade quando necessário.

Não foi o que se viu agora, por incontáveis motivos, quase todos relacionados a uma premissa específica: Ellie não é Ellie. Ou seja, a Ellie da série deixou de ser a mesma Ellie cujas motivações conhecemos porque assistimos à temporada passada. Há diferenças abissais entre ambas.

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Eu diria que uma desconheceria a outra. A Ellie adolescente já é fulminante. Divertida, sim, mas também mortal; infantil frequentemente (é uma menina de 14 ou 15 anos), mas ciente de que vive num mundo cujos laços sociais se desfizeram e no qual matar ou morrer é uma decisão permanentemente atualizada, diante da qual não cabe dúvida, como ela descobriria rapidamente.

Essa é a Ellie do velho testamento. Corte para o que Mazin fez com Ellie na segunda temporada: uma garota (aos 19 anos) abobalhada, incapaz de se orientar sozinha, inepta para questões básicas de sobrevivência, reiteradamente dependente de auxílio de terceiros, alvo de zombaria constante e, tão importante quanto, alheia a suas próprias justificativas para fazer o que faz e como faz.

E o que Ellie faz? Basicamente, trucida todos que encontra pela frente até chegar a Abby (Kaitlyn Dever), sua nêmesis na história. E não é que Ellie se desfaça de seus inimigos por acaso, por acidente, por erro de cálculo. Ellie é fria e inteligente. Mais: está consumida por esse desejo de vingança depois da morte de Joel, apenas isso interessa. Vingança e remorso. Culpa e dor.

A Ellie da segunda temporada está a anos-luz de distância da Ellie da primeira, e isso não é culpa de Ramsey, mas do roteiro e da direção. Em resumo, de Mazin e, por tabela, de Druckmann.

Isso torna a série necessariamente ruim? Depende. Levando-se em conta o material original, talvez. Fruindo-se a produção apenas com base no que a TV apresenta, contudo, é possível extrair algum divertimento, e só.

E digo isso porque uma das características marcantes de “The Last of us”, o jogo, é conferir peso às decisões. Ok, você decidiu atirar, agora aguenta o que vem pela frente. Cada atitude se desdobra, cada uma se reflete na história. Ninguém sai impune. Nessa zona cinzenta, os vilões são mocinhos e os mocinhos, vilões.

A inversão de perspectiva é uma estratégia que Druckmann maneja com habilidade no jogo, e isso faz toda a diferença. Experimentar o mundo a partir do ponto de vista de Abby, por exemplo, não apenas enriquece a narrativa, mas instaura uma fresta a partir da qual as ambivalências de cada personagem se tornam mais evidentes.

O que fez Mazin com tudo isso em mãos? Como já falei antes, decidiu estragar um tantinho as coisas.

Querem mais exemplos do que estou dizendo?

Tomem-se os personagens Jesse (Young Mazino) e Tommy (Gabriel Luna), irmão de Joel. O que eles fazem logo depois de Ellie e Dina (Isabela Merced) escaparem da comunidade de Jackson, então reduzida a escombros após a invasão (desnecessária) de infectados? Vão atrás das meninas para impedi-las de seguir adiante com o plano de vingança.

No jogo, Tommy e Jesse são parte desse plano para executar a vingança. Na série, eles se tornam um obstáculo para que a dupla de garotas leve a cabo a estratégia de caça aos “lobos”, facção da qual Abby era integrante.

Novamente, não é que haja problema nisso. Afinal de contas, estamos falando de uma adaptação. Mas já não é mais a mesma história. Os nomes, os personagens e os lugares são os mesmos, mas a paisagem afetiva e o arco moral de Ellie, Dina e Tommy se alterou drasticamente.

A carga de pressão se atenuou, sobretudo a de Ellie, que se viu destituída de uma sombra que a persegue o tempo inteiro. Na série, não. A Ellie de Mazin na segunda temporada é ainda uma adolescente que sai de casa numa aventura cujas consequências ela parece ignorar, e tudo bem. É uma menina infantilizada e só ocasionalmente atravessada por esse nó que é a perda, o luto, a morte brutal daquilo que mais se aproximou de um pai para ela: Joel.

E nem me ressinto de uma ou outra piada eventual ou de que elas (Dina e Ellie) tenham feito sexo depois do assassinato de Joel, e não antes, como no jogo. Para muita gente, o sexo é apenas uma maneira de sublimar a morte, principalmente nesse mundo destroçado.

Tampouco é incômodo que jovens se comportem como jovens, a despeito de zumbis e outras ameaças.

O erro, a meu ver, é esvaziar o sentido dramático da personagem, fazê-lo atrofiar e reduzi-lo a manifestações episódicas de força e frieza, como quando Ellie mata Nora – e mesmo nesse caso ela admite que a deixou ali para morrer, infectada pelos esporos, ou seja, não houve capacidade agêntica.

Notem a diferença: no jogo Ellie faz Nora indicar o lugar onde Abby se esconde. Para tanto, emula técnicas de tortura aprendidas com Joel.

Na série, Ellie mata por acaso, e até os hematomas que depois exibe (numa piscadela aos fãs do jogo) soam injustificados. Porque a Ellie de Mazin não luta, não atira, não mata. Ela tem um rifle dado por Seth e não o emprega para nada. Ellie treina boxe e não desfere golpes, nem mesmo contra Owen, morto quase que de maneira acidental. Ellie tem um canivete que nunca é sacado.

Em suma, não é a garota enlutada para quem o mundo girou de ponta-cabeça após a perda do “pai” e que agora está disposta a tudo, inclusive ao sacrifício, para se redimir.

Mazin diluiu a morte de Joel e fez de Ellie um manequim desossado, desmotivado, razão de gracejos continuados dos amigos e alvo de descrença, marcada pela imperícia e pelo voluntarismo. Uma jovem atabalhoada cujas pistas deixadas pelo caminho a tornam uma presa fácil para qualquer um, como enfatiza Jessie.

Não é que o fã do jogo espere da Ellie da série o mesmo tipo de performance física da personagem que ele se habituou a controlar no game, uma plataforma que por definição potencializa as capacidades motoras dos avatares.

É apenas que o fã do jogo não esperava que a Ellie fosse retratada em tintas tão condescendentes por Mazin.

Das duas, uma: ou o diretor detesta Ramsey, o que talvez não seja o caso; ou algo se deu nos bastidores da série para que Mazin tenha dado as costas de tal maneira ao produto exitoso que foi a primeira temporada, além dos dois jogos.

Uma terceira hipótese para esse resultado insatisfatório (nem desastroso nem maravilhoso) é a seguinte: pressa. Sim, sete capítulos somente, boa parte dos quais com menos de uma hora, jamais dariam conta de uma adaptação realmente fidedigna de um arco narrativo tão vasto quanto o de TLOU parte II. Daí que alguns episódios sejam ultracondensados e outros, espichados sem razão.

A pressa também pode ter sido responsável pelo atropelo na construção de Ellie, cuja perspectiva precisaria de mais tempo, mais zelo, mais situações nas quais talvez houvesse ficado de fato palpável a dimensão do que foi o trauma.

Mas o que se viu foi uma superposição antecipada das motivações de Ellie e de Abby, sobretudo de Abby, e um didatismo que não escondia a intenção mais pedestre de deixar às claras que ambas tinham razões para fazer o que fizeram ou o que ainda fariam, como se a série temesse o tempo todo qualquer tipo de terreno mais pantanoso sob o ponto de vista moral, o que vai na contramão do jogo.

Finalmente, repito que nada disso se deve a lacunas técnicas ou a deficiências dramatúrgicas do grupo de atores, todos muito bons. Ramsey é um prodígio. Ainda acho que ninguém faria uma Ellie melhor que ela na primeira temporada, quando a personagem tinha apenas 14 anos.

Entre a primeira e a segunda, todavia, muita coisa se passa. Os eventos são devastadores. E não se percebe essa devastação se refletir nem no rosto nem na conduta de Ellie, não por falta de talento de Ramsey, mas porque os caminhos escolhidos foram outros, acabando por afastar a história do núcleo de tensão que estrutura a narrativa de TLOU, tanto na parte I quanto na II.

Um adendo: longe de mim decretar a morte da série televisiva, no entanto. Pelo contrário, aposto todas as fichas que a temporada seguinte, centrada em Abby, será a melhor entre as três. Não porque Dever seja superior a Ramsey (é possível que seja mesmo, só não vem ao caso), mas porque há uma convergência maior entre aquilo que Abby é no jogo e aquilo que Abby tem sido até agora na televisão.

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