A tetralogia de Elena Ferrante é assinada por um nome postiço, um artifício que não desvela um rosto, encerrando-se em si mesmo e instaurando uma interrogação: quem está por trás da história? Quem sustenta a sua linguagem? Quem a escreve? Trata-se de autobiografia, no sentido que lhe atribui Lejeune (2014), ou inteira fabulação, e nisso o pacto mesmo se recombina?
Sem conhecê-la, sem haver de sua escritora nada mais que pegadas biográficas que a autora distribui no curso de entrevistas e artigos publicados, que protocolos de leitura são acionados pelo leitor no ato mesmo de fruição da narrativa? E que regime de autoria é mobilizado por esse processo de mascaramento de uma identidade de cuja existência sabe-se quase nada, exceto que se trata de mulher que tem filhos e já morou em Nápoles, cidade ao sul da Itália, um perfil comum a outros tantos?
Por fim, cabe interrogar, à maneira de Foucault: importa quem fala? Longe de escamotear subjetividades, a operação de disfarce sob pseudônimo convida a refletir sobre os mecanismos de leitura da tetralogia e suas implicações sobre autoria e pacto.
A indeterminação dessa faceta cria uma mobilidade autoral que tece leituras igualmente cambiantes, derivadas de um compromisso assumido desde a etapa inaugural de sua carreira como escritora: a publicação do romance Um amor incômodo, em 1991.
Em carta a seus editores que integra o volume de correspondências e artigos editado no Brasil em 2017 sob o título de Frantumaglia, Ferrante apresenta os termos, digamos assim, de seu projeto literário. As declarações se assemelham a uma carta de princípios éticos professados pela autora. É em face dela que a italiana pretende guiar-se no mundo, agora que havia logrado escrever um romance, na esteira do que certamente ela previa algum sucesso, circunstância que lhe exigiria assumir uma postura, uma tomada de posição: que lugar ocuparia como autora de livros?
Ferrante formula essa resposta e a envia em missiva datada de 21 de setembro de 1991 aos editores na “Edizioni e/o”, a casa que a publica na Itália:
“Não pretendo fazer nada por Um amor incômodo. Nada que pressuponha o comprometimento público de minha pessoa. Já fiz bastante por essa longa narrativa: eu a escrevi; se o livro for de algum valor, isso deve ser suficiente. Não participarei de debates e encontros, se me convidarem. Não irei receber prêmios, se quiserem me agraciar com algum. Nunca promoverei o livro, sobretudo na televisão, nem na Itália nem, eventualmente, no exterior” (FERRANTE, 2017, p. 12).
Está firmado aí o pacto inarredável entre Ferrante, seus livros e seus leitores, que virão às centenas de milhares, parte movida pelo desejo de conhecer o rosto atrás da máscara, parte seduzida por sua voz autoral a criar histórias de mulheres às voltas com problemas relacionados à atualidade, como a maternidade e as dificuldades de trabalho, as questões de subalternidade e de opressão de classe.
É sobre o compromisso autoral, porém, que desejamos jogar luz aqui, colocando-o lado a lado Ferrante e suas protagonistas, contrastando-as, o desaparecimento de uma reforçando a centralidade das demais. Ao assumir de si para si esse contrato de permanecer à sombra da obra, a escritora desde já estabelece uma linha de corte para a leitura de seus trabalhos, como se dissesse: contentem-se com o escrito, o discurso, a linguagem, pois afinal é só o que temos, é o que poderemos ter, e isso, ao cabo, deveria bastar a quem se atreve a mergulhar nos livros.
Essa decisão de ausentar-se da arena pública, está evidente, não é pacífica, tampouco se esgota numa recusa impenetrável a partir da qual a autora se sentirá desincumbida de falar. Contrariamente ao que se esperava, a rejeição a uma existência manifesta, ou seja, a ter um lugar de visibilidade na trama de circulação e visibilidade do produto literário, condiciona-a a estar permanentemente disposta a se confrontar com perguntas em torno do mistério da autoria, de seu estatuto e condições.
São frequentes, portanto, as intervenções da autora em torno do assunto, vez que é recorrentemente instada a abordá-lo. Sua decisão pelo anonimato precisa ser renovada a cada novo diálogo, a cada artigo ou entrevista, a cada interpelação pública acerca do seu projeto surge candente o problema da autoria.
“Para mim, é difícil expor todos os motivos dessa decisão. Quero apenas confidenciar que essa é uma pequena aposta comigo mesma, com minhas convicções. Acredito que, após terem sido escritos, os livros não precisam dos autores para nada. (...) Os verdadeiros milagres são aqueles que ninguém sabe quem fez, sejam eles os ínfimos portentos dos espíritos secretos da casa ou os grandes prodígios que nos deixam realmente boquiabertos” (FERRANTE, 2017, p. 12).
Dois aspectos chamam atenção no excerto reproduzido acima. Primeiro, trata-se de uma “decisão”, e, como tal, é deliberada, refletida, maturada e finalmente executada, mas não de todo explicada. Há aspectos que a autora omite, detalhes sobre os quais não fala, embora admita sua dificuldade. Por que é complexo elucidá-los? Ferrante já deu pistas do que estaria por trás do anonimato nesse mesmo livro, ao se referir a uma hipotética preservação de familiares, que se veriam expostos em suas narrativas.
Esse excesso de pudor da autora, se se pode chamá-lo assim, leva a outra questão, qual seja, a da suspeita de que a série napolitana ampara-se, em alguma medida, nas vivências reais de personagens que compartilharam convívio com Ferrante, de modo que ela se cobre de cuidados para não os trazer à baila, causando-lhes constrangimento ou qualquer outra espécie de adversidade, marcando-os a fogo com revelações que atingiriam a todos, inclusive a ela mesma.
Curiosamente, Elena, não a autora, mas a personagem da tetralogia, também ela escritora e napolitana, é execrada pela família e amigos do bairro depois de publicar seu primeiro livro, baseado livremente nas experiências que coletou no mundo real napolitano, como o episódio de abuso sexual que se seguiu a sua passagem por uma casa de veraneio ao lado de Lila. Elena relata-o, entre tantos outros, e o efeito de sua prosa é impactante fora da esfera do bairro e da família, segundo avalia a própria narradora. Dentro do microcosmo do bairro, entretanto, a recepção é das piores, por uma razão: lá não se faz distinção entre o narrado e o vivido, tudo partilha da mesma matéria suja de que o livro é formado e a qual representa tão bem. A obra de estreia de Elena é tomada como uma confissão vulgar que encena um episódio desagradável. Não apenas. A máfia napolitana, também presente nessa obra ficcional dentro da ficção que é a tetralogia, logo faz demonstrar que a autora estava prestes a ultrapassar uma linha perigosa.
Nos trechos citados aqui de passagem, vê-se que Ferrante como que dramatiza, em chave metaliterária, os impasses do gênero romanesco ao mostrar os riscos que ela mesma correria caso assumisse a autoria de suas histórias, emprestando um nome real e um rosto a suas invenções, que logo seriam tomadas ao pé da letra como se confessionais ou autobiográficas, quando não inteiramente autoficcionais, disso resultando talvez uma série de querelas (jurídicas?) que a atemorizavam ao optar pelo disfarce, dissuadindo-a de se mostrar. Há precedentes dessas arengas no mundo literário, como os casos de Rachel Cusk e Karl Ove Knausgard, para citar dois contemporâneos, ambos encurralados por advogados depois de publicarem livros inspirados na vida privada de si e dos que os cercam.
Cumpre destacar um segundo aspecto do trecho supracitado. Reproduzo-o aqui novamente por considerá-lo cristalino quanto aos objetivos gerais da autora e ao caráter ponderado de sua atitude. Segue: “Quero apenas confidenciar que essa é uma pequena aposta comigo mesma, com minhas convicções”.
Reside aí o outro lado ou ângulo da questão do anonimato na obra ferrantiana: além da conveniência pessoal, de constituir um véu ou salvaguarda afetiva, trata-se de aposta e jogo encetados a partir de convicções pessoais acerca de uma certa noção do papel do escritor frente a sua obra. Ferrante desejou colocá-la em prática, desenvolvendo, doravante, um projeto literário no qual não se separam esse gesto inicial e os rumos que a sua prosa tomaria dali para frente. No limite, é possível afirmar que a estética ferrantiana só existe porque guardada como um segredo por essa máscara Elena Ferrante, para cuja sustentação é fundamental a concepção que a escritora tem da função da autoria.
Como se vê, não é casual, portanto, que Ferrante tenha decidido apagar-se como pessoa que escreve em face da prevalência do escrito, da obra e das suas personagens. No cerne de seu trabalho está um projeto estético desde há muito amadurecido e cujo objetivo é repor inteiramente a centralidade do texto, conforme o entende Barthes (2004) e a própria autora cuida em endossar nas leituras que faz dos seus livros, reunidas no volume Frantumaglia (2017), uma coletânea de colaborações com a imprensa, cartas a leitores e conversas com jornalistas. Nela se apanha uma fração do sujeito por trás da obra e do nome criado – a Ferrante cede, por frestas e filtros, e o indivíduo mostra-se em pequenas porções, apenas o bastante para saciar certo desejo do qual ela desdenha sempre como excessivamente midiático.
Por essas falas públicas, dela sabe-se o quê? Que é professora, tradutora e formada em letras clássicas, que já morou na Grécia e em outros países, por exemplo, que foi ou é casada, que tem filhos. Tudo isso é coletado em suas respostas como pistas ou marcas que montam, aos poucos, um perfil insuficiente de seu rosto, ainda desbotado e sem contornos, um rosto que bem poderia ser o de uma de suas personagens – talvez Leda, a professora universitária de A filha perdida? Ou Delia? Ou mesmo Olga, de quem o marido se evade, sem deixar rastros, refugiando num lugar que a esposa, deixada para trás, não consegue acessar. Não se sabe. Ferrante é todas as suas personagens e nenhuma delas.
No trecho a seguir, por exemplo, a escritora explicita as razões pelas quais abdicou de um lugar na cena pública, empreendendo esse apagamento e afastando-se de sua obra, pela qual disse que já fazia muito ao escrevê-la:
“Acho que o autor deve ser procurado não na pessoa física de quem escreve, não na sua vida privada, mas nos livros que levam sua assinatura. Fora dos textos e das suas estratégias expressivas, há apenas fofoca. Vamos devolver a verdadeira centralidade aos livros” (FERRANTE, 2017, p.379).
Noutra passagem do mesmo volume, Ferrante já afirmara esse mesmo propósito autoral e estético, visto que da decisão de não se revelar não se dissocia esse objetivo maior, mais amplo, de habitar estritamente o texto e nenhum espaço fora dele:
“Não defendo a ideia de que o autor não é essencial. Procuro apenas decidir eu mesma o que, no que diz respeito a mim, deve ser tornado público e o que deve permanecer privado. Acho que, na arte, a vida que conta é aquela que permanece milagrosamente viva nas obras” (FERRANTE, 2017, p. 190).
Em uma outra intervenção, a escritora retoma o mesmo pacto de centralidade do texto e apagamento de uma certa noção de autoria que a incomoda:
“Cada leitor, se ama ler, também deve amar um pouco de virtualidade. O que a escrita delineia senão o contorno de um mundo virtual? (...) A personalidade de quem escreve histórias está toda na virtualidade dos livros. Olhe lá dentro e encontrará os olhos, o sexo, o estilo de vida, a classe social e a voz do id” (FERRANTE, 2017, p. 223).
Esse interdito pessoal, espécie de voto de não aparição pública que conserva o aspecto físico do escritor e o mantém alheio a uma parte dos mecanismos de consagração da obra literária e de seu autor, dos quais a imprensa é peça crucial, cria uma autoria cambiante que passei a chamar de “fantasmática” justamente porque integra um esforço deliberado de desaparecimento.
Embora seja tentador associar o destino de suas personagens ao da própria autora, vendo no gesto de desaparecimento um indício para a interpretação da postura de Ferrante em face da autoralidade, há elementos concretos, nas obras e nos discursos sobre as obras, de que a ideia que subjaz à opção pelo disfarce de autoria é a da oclusão. O desaparecimento não é meramente tópico narrativo, mas uma reiteração ou constante que sobressai dos livros, do narrado, para se realimentar dessa autoria fantasmática – ou, pelo contrário, essa autoria fantasmática resulta no universo alegoricamente assentado na técnica do “chiaroscuro”.
Em Ferrante, esse processo é chave-mestra de uma escritura cujas linhas de força se alimentam precisamente do obscuro, do entreluz e do simulacro, numa engenharia de espelhos montada com personagens que remetem constantemente não à autora, mas à ideia que se faz dela a partir das informações ofertadas criteriosamente pela própria Ferrante, num controle exercido sobre a existência que parece estar em consonância com o gesto proposital de dar a ver apenas o que lhe é conveniente.
À volatilização de uma identidade do escritor, de que é exemplo o impasse especular prévio à leitura (a narradora que também é Elena e vive em Nápoles, de onde passa a contar a história em primeira pessoa, desenvolvendo-a como uma autobiografia), Ferrante acrescenta outro nível de apagamento ao mergulhar suas personagens numa relação cujos termos podem ser definidos assim: à Elena Greco, a escritora, cumpre a tarefa de reatar o fio da trajetória de Rafaella Cerullo (Lila), uma operária sem estudo formal que a acompanha desde menina e cuja fuga é o ponto de partida do relato.
Elena (a personagem) empenha-se, então, na restituição de uma carnalidade à amiga, devolvendo-lhe concretude à medida que repassa em pormenores o duplo itinerário. Sua escrita é um gesto contra o esquecimento de que Lila sempre falara e que perseguia obstinadamente – é um ato de recusa a esse esquecimento, de apreensão da vida, mas também de vingança:
“Como sempre Lila exagerou, pensei. Estava extrapolando o conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também apagar toda a vida que deixara para trás. (...) Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou da memória” (FERRANTE, 2015, p. 17).
Aponto nessa passagem a formulação objetiva da empreitada a que se propõe a narradora da tetralogia: reaver, detalhe a detalhe, o percurso traçado por Lila, de sua infância até o momento em que desaparece sem deixar marca. Mais: fazê-lo não oralmente, mas por escrito, em modos de autobiografia, região de entremeio onde se confundem a narração e o ato de narrar.
Sua história, a história de Elena, simultaneamente lembrança recuperada e escrita, está assentada não somente nas memórias da narradora, mas nas de terceiros com quem conversa a pretexto de aclarar pontos pouco nítidos desse passado, operando como numa linha de investigação – procura montar esse quebra-cabeça mnemônico ainda que lhe faltem todas as peças.
Decerto esse fio que Elena estende ao passado enlaça igualmente sua própria trajetória, os passos que a fizeram se tornar quem era naquele momento: uma escritora que passa a tratar da amiga que sumira, que decide contar essa história de desaparecimento. Uma artista de sucesso, com livros escritos em meio à tensão que se estabelece desde a infância na tempestuosa relação com Lila, que a acompanha e a quem acompanha como uma espécie de duplo.
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