Pular para o conteúdo principal

Pedagogia do remendo


O cearense é, antes de tudo, um remendo. O nativo define-se não pelo que constrói, mas pelas gambiarras que maneja com habilidade particular. Feitas por nós, a Torre Eiffel não passaria de um ajuntamento de bambus e cola maluca e a ponte Rio-Niterói, um conjunto mambembe de tábuas atadas umas às outras por cadarços de sapatos - as pirâmides se transformariam em barro untado com manteiga da terra.

Nosso esporte é o improviso. Evitamos a solução definitiva como o beatífico senador evita o doce pecado da carne. Sempre que a alma local se vê confrontada com um impasse, a saída costumeira é recorrer ao paliativo, lugar de chegada de todo esforço.

Ao alencarino, eliminar por completo um problema implica necessariamente criar uma arenga maior ainda: afinal, o que faremos quando não houver mais nada para fazer?

Daí que o reparo final soe estapafúrdio e mesmo ontologicamente contraproducente. Interessa o gesto incompleto, a artesania do provisório, a engenharia do incerto, a arquitetura da lacuna e por aí vai.

Em nossa aldeia, estátuas recebem demãos de tinta acobreada, assumindo contornos de alegoria carnavalesca enquanto esperam que um reparo se faça de uma vez por todas. Erguidas com o esmero dos bêbados e o rigor dos descuidistas, passarelas bambeiam à passagem dos transeuntes numa BR – 116 cuja precariedade já remonta a décadas.

E quando tudo leva a crer que o xampu finalmente acabou, tratamos de diluir os dois últimos dedos do líquido com um bocado d’água, fazendo a mistura render mais um mês, extraindo do volume morto mais uma porção da sua alma e nisso ganhando uma sobrevida económica plenamente justificada pelo escasso.

A impressão é que, em nossa configuração genotípica, há apenas um gene dominante: o que responde pelo “puxadinho” e pela certeza de que, entre a negligência moralmente condenável e a resolução autocelebratória, há uma estrada intermediária que fica salomonicamente a meio caminho do não fazer e do fazer.

Em contato com pregos atravessados na chinela japonesa, a palha de aço na ponta da antena ou a tenda de lona recepcionando turistas no aeroporto, por exemplo, o gentio suspira, extasiado.

Diante da obra inacabada, do aquário jamais concluído, do tijolo mal assentado e da reforma pela metade, insufla o peito e, como um renascentista desgarrado a quem a natureza houvesse concedido uma sobrevida noutro século, convoca: “Parla!”.

Somos assim, uma nação mezzo guéri-guéri, mezzo ameríndia. Se podemos remendar, não perdemos tempo com medidas drásticas. Se o problema requer atenção especial, caprichamos no bandaid, fazendo do precário o fixo, instaurando a mobilidade como marca desse espírito arredio ao arrematado.E se julgamos que o dispêndio de energia na tarefa é excessivo, rebolamos no mato, destino final do descartável e do trabalhoso, como qualquer canteiro de rua ou avenida é prova inconteste.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...