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Essa coisa antiga


Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013 

Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la. 

Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Ou um telefone celular, que, por mais inteligente que possa parecer, ainda é incapaz de se consolidar no imaginário como qualquer coisa além de um naco engraçadinho de plástico e circuitos eletrônicos com bochechas touchscreen. 

Também regido por essas leis não escritas, um estádio de futebol não é mais somente um estádio, mas uma arena, expressão que tem muitos significados. Entre eles, o de abrigar eventos de natureza distinta, como shows de rock e celebrações religiosas, passando por exposições e feiras. Na livraria, um DJ anima o lançamento de um romance, que logo vai dividir o espaço com jogos, brinquedos, bonecos, filmes e uma empadinha deliciosa de queijo de búfala. 

Os desktops estão muito próximos da aposentadoria, assegura um figurão da informática, palavra que também deve estar pertinho de pendurar as chuteiras. O futuro, dizem, pertence às multitelas, aos mecanismos anfíbios e às ferramentas de cujo esforço supremo resultará uma economia de tempo para todos. Um tempo extra que certamente empenharemos na atividade algo esotérica de encarar telas por 24 horas ininterruptas. 

O espaço doméstico também sofre grandes alterações. Se a loja de conveniências agora também é café e o lava-jato oferece serviços de corte de cabelo para homens e mulheres, a sala de casa já não é uma sala. Nesse novo estatuto que organiza o ambiente residencial, além do destino a que fora incumbida, a sala cumpre múltiplas funcionalidades, que são acionadas por um biombo ou porta corrediça ou qualquer outro mecanismo que demarque a transição de zonas. 

O banheiro esconde um armário; um armário, outro armário; a cozinha, habitualmente reservada a encontros mais pessoais, contamina-se de formalidade; o quarto das crianças vira miniacademia. 

Espraiado como um rei a quem não falta nada, exceto súditos, o sofá esconde uma vocação irritantemente festejada: não se limita a abraçar bundas e cotovelos. Com um leve toque, transforma-se em cama e, nos casos mais graves, em beliche. 

Não por acaso, os apartamentos ficam cada vez menores. As cidades se adensam. Nos lugares onde a exiguidade é norma, os objetos devem cumprir a lei da multiusabilidade. Tudo se compacta, otimiza-se. O tempo, já fracionado, agora mergulha na escala do nano. Afinal, a vida tem que transcorrer numa minúscula quadratura. O design adapta tudo ao breve, ao menor, ao versátil. A impressão é que ficamos estreitos e quase desaparecemos sob a miríade de sombras projetadas por um exército de pequenos totens.

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