O morto da praia talvez não saiba da lua vermelha. Morreu sem que a visse, ou talvez a tenha visto e por isso mesmo entrou na água no dia anterior e de mansinho foi dando passos seguros. Agarrando-se ao rendado que as ondas produzem, cobriu-se até a altura do peito e depois do pescoço e finalmente da cabeça.
Então, já totalmente submerso, ouvindo da cidade que deixou pra trás somente o rumorejado filtrado, som coalhado na água, andou mais alguns metros.
Até que não restassem mais nem som nem luz nem frio, apenas gesto deliberado. Ou quem sabe tenha sido reflexo tardio de uma tarde na infância.
De repente, o homem, que passara a manhã inteira com os pés enfiados na areia, lembrara de algo. Um amigo da escola. Uma professora. Um rabisco no caderno.
O homem da praia é o corpo esquecido e encontrado hoje pela manhã. Carregavam-no na caixa de metal. Dois homens de cada lado. É preciso quatro vezes mais pessoas para suportar o peso de uma apenas.
Conduziam-no à frente de uma nuvem de curiosos. Lá vai o afogado. O homem que não tornou. O refugiado do tempo.
Sem que o vissem, o homem agora morto havia entrado no edifício San Pedro duas noites atrás. Sozinho, levara apenas um colchão e três ou quatro livros. Uma muda de roupa. Um álbum de fotografias.
O morto agora homem então armara como que uma estante feita de tijolos num canto do primeiro cômodo que encontrou na construção. Escorado contra a parede, esperou o sono.
No dia seguinte, entregou uma cédula de cinco reais ao vendedor de coco em frente ao San Pedro. Em goles demorados, secou toda a água. Depois pediu que abrissem a quenga para que lambesse a lama que se forma no mais dentro.
Eram 9 horas quando sentou na areia com as fotos e o livro.
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