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Trapaça

 

Meu avô era o que se chamava de trapaceiro, jogava com cartas marcadas cuja sintaxe apenas ele conhecia. Eram marcas muito sutis, meu tio não soube explicar, mas dizia que ele fazia microincisões no baralho, nas pontas das cartas, intervenções de pouca legibilidade, uma espécie de ourivesaria da malandragem, de modo que apenas ele e mais ninguém conseguiria identificar o naipe e a numeração. Ganhou algum dinheiro à sua maneira, viajando e jogando apostado, até que um dia morreu numa briga. 

Morreu na rua, escorado num muro, segurando a barriga depois de levar um tiro.

Outras famílias têm marcos afetivos na cidade onde vivem. Ali foi nosso primeiro encontro, acolá foi a primeira comunhão da sua irmã etc. A minha, contudo, era mais extravagante. Quando passávamos de carro a caminho da casa da minha mãe, meu pai apontava a esquina e dizia “seu avô morreu bem naquele canto”, indicando o local onde hoje funciona uma loja de autopeças, e acho mesmo que ninguém empregado nesse comércio suspeita de que antes de quase todo mundo que trabalha nessa oficina ter nascido o meu avô havia morrido naquele pedaço de chão. Uma morte estúpida, embora fosse dessa maneira que os homens do seu tempo morressem, meu pai sempre falava, repetindo a história pela milésima vez porque foi assim que ela se espalhou pelo bairro inteiro. Saiu inclusive no jornal, ressalta, sem tirar os olhos da direção, em seguida pedindo novamente que qualquer dia eu faça uma pesquisa e procure pela morte do meu avô. Mas ele sabe que eu não farei isso, não agora.

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