Era isso, eu queria ir em frente, mas não sabia de nada. Eu queria outra vida, mas não sabia qual. Eu queria estudar, mas não havia escolhido o quê. Eu queria livros, mas não tinha dinheiro. Eu queria viajar e morar numa comunidade alternativa em Minas Gerais e fazer o caminho de Santiago de Compostela com minha primeira namorada, mas tive de me contentar com um emprego de entregador de pizza das 16h às 22h em troca de um salário cuja metade eu gastava com romances e a outra metade eu não sei exatamente o que fazia, mas juro que não era tanto assim a ponto de eu poder fazer uma farra.
No barco eu me sentia como se de volta à sala, de volta a antes de fazer essas escolhas, uma pequena transgressão do tempo. Mas agora era diferente porque eu não tinha ninguém que me interrompesse. Podia ficar ali o tempo que fosse, sair e voltar, andar pela popa e a proa devastadas pela maresia e ferrugem e observar por quantos dias desejasse o movimento contrário. As ondas quebrando contra o metal que ainda sustenta a carcaça, o casco preso ao banco de areia, como se tivesse os pés fixos e dali não arredasse não porque não desejasse, mas porque não podia.
Como qualquer um que morava aqui, ele tinha chegado por acaso e ficado contra a vontade, a terra o prendera. No caso, o mar o havia fisgado, o mar verde-esmeralda fundante, o mesmo por onde os navegadores e todo o restante da equipe aportaram e em torno do qual se criou a imagem do que somos como gente, o mar cantado por José de Alencar.
Eu jamais quis ir embora, jamais. Sempre preferi ficar a ter de me extraviar ou levantar voo. Talvez por isso gostasse da escola e do bairro e da casa da mãe e do pai em casa e da família e dos irmãos. Mas tudo um dia foi se desfazendo, mesmo quando não se desfazia, era uma ameaça, uma sombra projetada como essas que fazemos com as mãos e uma lanterna, não sei se explico direito.
Primeiro a casa, depois o pai, a família, os móveis, as colunas, o texto da casa inteiro borrado no qual eu não conseguia ler mais nada. A vida perdera legibilidade. Até que não restasse nada além da ideia que fazíamos do que tinha sido uma casa.
Tudo desmorona, tudo cai, dizia a vó mirando um pé de pau no quintal quando eu era criança. Tudo se condena, e então balançava o tronco arruinado por formiga ou cupim. O fruto apodrecido porque ninguém o queria, o mato crescido porque não havia quem o desbastasse, a água salobra da cacimba porque faltava quem a limpasse, as telhas da velha construção fora do lugar e as paredes por pintar e a porta da frente rachada por onde às vezes o vizinho olhava e chamava pra fora, de onde nos conduzia a sua sala para uma brincadeira que ele chamava de trenzinho: ele atrás de mim, minha irmã na minha frente, enquanto roçava seu corpo no meu corpo de criança e grunhia baixinho.
Do mesmo modo esse barco havia sido condenado a estar onde está, a desfazer-se aos poucos, a perecer sem pressa, testemunho do próprio desaparecimento.
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